0
Shares
Pinterest Google+

Capital europeia reduzida a pó por ordem de Hitler aquando da Segunda Guerra Mundial, Varsóvia distingue-se sobretudo pela abundância de estilos arquitectónicos

Ressurgida das cinzas com bairros medievais, edifícios barrocos, apartamentos estalinistas e torres ultramodernas, Varsóvia resulta de uma tragédia inigualável, mas principalmente do triunfo excepcional das suas gentes que na História a inscreveram como verdadeira fénix em resultado de uma vontade indómita de viver e de recuperar um passado que não deixaram arrasar nem esquecer.

Nascida em finais do século XIII, inícios do século XIV e no passado apelidada por muitos como a Paris do Norte, Varsóvia ergue-se nas margens do Vístula, ressurgindo em 1918 como capital da Polónia que voltava então ao mapa após 123 anos de partilha territorial entre a Alemanha, o Império Austro-Húngaro e a Rússia. Representando a cidade mais populosa da Europa na década de 20 e 30 do século XX, vivia lotada, com uma população muitas vezes apertada em bairros construídos à pressa e sem infraestruturas de qualidade, não lhe restando espaço para novas construções, facto que levou a que os seus arquitectos, em grande parte inspirados por Le Corbusier, desejassem trazê-la para a modernidade da era contemporânea, iniciando assim estudos e planificações que um dia se provariam muitíssimo úteis.

Primeira destruição: o bombardeamento

A 1 de Setembro de 1939, a Polónia era invadida por terra, ar e mar e três dias mais tarde as bombas da Wehrmacht choviam sobre Varsóvia destruindo não as fábricas ou os alvos militares mas as habitações garantindo deste modo a cessação do seu funcionamento. Numa tentativa de desmoralização dos habitantes e de instalar uma política de terror, Hitler ordena a total destruição de edifícios simbólicos e antigos, bem como do Palácio Real que, ainda que muito danificado, resistiria. Após 20 dias de combate, o cenário era de capitulação de uma população altamente traumatizada, com mais de dez por cento da cidade destruída. A 5 de Setembro de 1931 dava-se o desfile das tropas vitoriosas alemãs sobre as suas ruas. O terror instalava-se entre a população que assistia a execuções sumárias em plena via pública e ao roubo dos tesouros nacionais e das principais obras de arte.

Segunda destruição: A Insurreição do gueto

Delirante, Hitler decidiria transformar a capital numa pequena vila alemã com capacidade para 100 mil colonos alemães. Os poucos polacos que ficassem seriam seus escravos, não restando espaço para os judeus, que então representavam um terço da população. Determina-se, então, o seu envio para aquele que ficaria na História como um dos mais famosos guetos do mundo, e onde em cerca de 3,4 quilómetros quadrados viveram em simultâneo 500 mil pessoas sem quaisquer cuidados de saúde e sem comida, condenadas a contrair doenças e à própria morte. As deportações para os campos de morte seguir-se-iam em 1942 mas, conscientes da sua condenação, os judeus de Varsóvia decidem então partir desta vida mas de armas nas mãos e em 19 de Abril de 1943 recebem as forças alemãs ao tiro. A brava insurreição chega a durar mais de um mês acabando por ser esmagada com fuzilamentos ou deportações. O gueto é esvaziado e arrasado restando apenas entulho e a Igreja de Santo Agostinho, que então servia de ponto de observação e de depósito de munições alemãs. Todos os bairros judeus haviam sido eliminados. Em meados do mesmo ano, metade de Varsóvia estava destruída e um terço da sua população tinha sido dizimada.

Terceira destruição: A revolta de Varsóvia

Mas o espírito polaco viria a manifestar-se novamente, apesar de toda a adversidade. A 1 de Agosto de 1944, seriam os próprios habitantes que ali restavam que se ergueriam contra o domínio nazi. Soldados, civis, homens, mulheres e crianças pegavam em armas numa derradeira e desesperada tentativa de libertação, mantendo as frentes até 2 de Outubro, quando a cidade caia de novo aos pés do agressor com um saldo de 200 mil civis mortos. Os soldados remanescentes e a restante população foram, então, evacuados à força e, na sua ira, Hitler ordenou a total destruição da cidade, que durante os três meses seguintes foi alvo de lança-chamas e de dinamite carregadas pelo esquadrão especial designado para o efeito. Do palácio saxão salvar-se-iam apenas três colunas que guardavam o monumento ao soldado desconhecido.

A chegada do Exército Vermelho

Em Janeiro de 45, Estaline avançava para lá do Vístula dando início ao seu objectivo expansionista num território vazio de qualquer tipo de vida. Um dos homens do seu exército diria: “A cidade era um cemitério, já não havia ninguém. De tempos em tempos, víamos surgir silhuetas humanas, como fantasmas. À nossa chegada houve poucas lágrimas de alegria. Afinal, estas pessoas já não sabiam chorar”. Num lugar onde no passado viviam 1 milhão e 300 mil pessoas sobravam agora 162 mil almas. A destruição da capital foi superior a 80 por cento e Varsóvia ficou mundialmente conhecida em virtude da sua devastação. A reconstrução seria incerta e parecia mais sensato mudar a capital para outra cidade. No entanto, logo após as primeiras horas de libertação, os seus habitantes acorreram em massa, instalando-se no que restava das suas casas. Diariamente chegavam 2500 pessoas. Aos poucos, a vida recomeçou num esforço indómito de recuperação de uma identidade, de um território. O regresso em massa da população determinaria que em tempo recorde Varsóvia se erguesse das cinzas. Numa busca por popularidade e legitimação da sua presença, o novo ocupante adoptaria a medida estratégica de promover a recuperação da capital e Estaline decide colaborar com 1500 urbanistas e arquitectos polacos que se juntam num verdadeiro espírito de missão. No terreno era necessário limpar cerca de 20 milhões de metros cúbicos de destroços antes de se avançar para qualquer reconstrução. Os civis mobilizam-se e todos os dias um milhar de pessoas participa, sem luvas, numa tarefa que jamais seria possivelmente concretizada sem a sua participação. Sem máquinas e recorrendo apenas à força de braços, tentava-se recuperar tudo o que se pudesse reutilizar. As pontes, as escolas, as estradas e os hospitais foram estabelecidos como infraestruturas prioritárias e o arquitecto Jan Zachwatowicz ficou responsável pela reconstrução da Varsóvia histórica. A capital cresceria então com base em dois pilares: o modernismo e a história, sendo que o partido comunista também participaria, resultando a nova cidade de um compromisso entre todas as partes.

A recuperação incial

Uma das principais construções para a nova Varsóvia consistiu no estabelecimento de uma ligação que unisse as duas margens, a Estrada Leste-Oeste. Para este efeito recorre-se à construção de um túnel com dois sentidos que começa nas margens do Vístula e termina entre o Palácio Real e a Igreja de Santa Ana. Tinha como objectivo evitar que os trabalhadores não demorassem mais de 30 minutos a chegar ao trabalho e, portando, de modo a não chegarem já cansados, evidenciando uma reflexão global no planeamento de reconstrução da cidade. Os monumentos históricos ainda existentes seriam demolidos para evitar escavar o túnel e ganhar tempo, estando prevista a sua reconstrução logo após a obra principal. No final dos anos 40, no grande estaleiro que era Varsóvia, tudo se constrói ao mesmo tempo: sete milhões de habitações são construídas para a população, um dos maiores projectos imobiliários a história da Europa. A construção começaria em 1948 em Muranov, o preciso bairro onde ficara situado o gueto judeu. Ao invés de um bairro social sobrelotado, sujo e triste, opta-se por criar uma zona com espaços verdes, com praças, serviços e escolas, mas para limpar todo aquele terreno seriam necessários três anos, pelo que se optou por nivelar os escombros e construir directamente sobre as ruínas. O historiador de arte do Museu de Arte Contemporânea daquela cidade, Thomas Fudala, afirma a propósito “ainda hoje ao passearmos por Varsóvia temos noção de estarmos sobre ruínas. Sobre coisas que desapareceram. Curiosamente, os fantasmas do passado ainda nos assombram”.

A Cidade Velha tornada Património Mundial

Construídos os bairros habitacionais com base em novos projectos, a recuperação da cidade antiga representava um desafio. Zachwatowicz decide a reconstrução de raiz de um património com vários séculos recorrendo imitações deliberadas. O património histórico da Cidade Velha e da Praça do Mercado regressam, preservando deste modo a história secular e mantendo a identidade nacional e o sentido de patriotismo. A partir de alicerces de edifícios que remontavam à época gótica reconstrói-se esta parte da cidade à imagem do que era na Idade Média, recuperando-se também a muralha com mais de 700 anos anteriormente escondida pelo amontoar de habitações. Regressa à vida a Catedral de São João, também da Idade Média e restaurada no século XIX, desta vez com uma fachada concebida a partir da criatividade do curador da obra em virtude da falta de registos que descrevessem a sua imagem. O passado recupera-se e melhora-se e as casas desta zona da cidade são reconstruídas com base em planos milagrosamente salvos por terem sido escondidos em caixões de um mosteiro. Os elementos originais entretanto encontrados nos destroços são incluídos nas suas fachadas sempre que possível. Em apenas três anos são 700 os edifícios históricos que renascem das cinzas. Décadas mais tarde declarada Património Mundial da Unesco, a Cidade Velha ilustra a recuperação de um passado melhorado pelos arquitectos do século XX.

A marca do ocupante

Mas o Partido Comunista quis também deixar a sua marca: os santos e as imagens religiosas que antes se encontravam nas fachadas dos edifícios deram lugar a figuras seculares e a nova doutrina em vigor, o socialismo real, tinha também de ficar espelhado nas novas construções. Nos anos 50 ergue-se, então, o Bairro MDM, zona residencial no centro da cidade baseada em estruturas metálicas cobertas por fachadas de pedra, o modelo a seguir. Com uma altura média de sete andares e aparência imponente, decoram-se alguns deles com colunas inspiradas na Praça de São Pedro de Roma, mas as fachadas a retratar os heróis do novo regime. O ícone deste projecto seria o Palácio da Cultura e da Ciência, situado no centro da cidade. Albergaria centros de congressos, teatros, restaurantes e cafés, um cinema e uma piscina no piso térreo. Nos andares superiores, uma universidade e escritórios. Com 42 andares, eleva-se a 230 metros trabalhando ali cinco mil pessoas todos os dias. Concluído em três anos por dez mil operários trata-se de um edifício muito controverso mas verdadeiro emblema da cidade.

Alma polaca

Só no final dos anos 60 é que Varsóvia voltaria a alcançar um valor populacional equivalente ao pré-guerra. O Palácio Real, símbolo do antigo poder, só seria recuperado nos anos 70 através dos donativos de toda a população polaca. Construindo edifícios onde actualmente habitam todas as classes sociais, os polacos não se esqueceram de homenagear os que pereceram às mãos nazis. O monumento à insurreição no gueto foi construído logo em 1948, recorrendo a basalto cinzento encomendado à Suécia pela Alemanha para a concepção de bustos de Hitler. Ainda em linha de homenagem e de testemunho do terrível episódio da cidade e da História, em 2014 abria portas o Museu Polin narrando a partir de então a memória dos judeus polacos.

Previous post

The Jacobite: Através das highlands escocesas

Next post

Joel Sartore: “Ao salvamos outras espécies salvamo-nos a nós próprios”