0
Shares
Pinterest Google+

Integrou a primeira tripulação a libertar-se da força da gravidade da Terra e a orbitar a Lua a bordo da missão Apollo 8, em 1968, e é o autor da primeira fotografia do planeta que habitamos e que viria literalmente a revolucionar toda a Humanidade. Chamou-lhe Earthrise

Estávamos no dia 21 de Dezembro de 1968, poucos dias antes do Natal, e com apenas 35 anos William Anders juntava-se aos veteranos do Projecto Gemini (o segundo de exploração espacial realizado pela NASA) Jim Lovell e Frank Borman para realizar a primeira missão humana à Lua. Tinha sido selecionado como astronauta pela NASA em 1964 quando trabalhava no Laboratório Militar da Força Aérea. Naquela altura era responsável pela gestão técnica de programas de protecção de reactores de energia nuclear e de efeitos de radiação. Antes servira como piloto de caças em esquadrões de interceptação do Comando de Defesa na Força Aérea logo a seguir ao bacharelato em Ciências na Academia Naval Americana em 1955.

Na manhã da véspera de Natal, após três dias em viagem no espaço, os três astronautas entraram na órbita lunar. A missão consistia em identificar zonas mais planas que em futuros voos pudessem servir para realizar as aterragens e quando Houston questionou a Apollo 8 sobre a aparência da Lua, a apenas 96 quilómetros, a resposta foi clara. “A Lua é essencialmente cinzenta, sem cor.” Naquela missão não houvera “qualquer interesse em que obtivéssemos imagens da Terra vista do espaço. Ninguém me disse para fotografar a Terra e eu também não pensei nisso”, recorda Anders numa produção televisiva da Revista Time (Earthrise: The Story Behind William Anders’ Apollo 8 Photograph). “A NASA estava focada na missão e o Borman era particularmente contra as fotografias; para ele representavam mais um modo de a tripulação se distrair, tendo de realizar a missão, que consistia em viajar em torno da Lua e em regressarmos vivos.” Frank Borman reconheceria mais tarde estar errado, destacando a importância da presença de câmaras a bordo.

Não sou nem filosófico nem captei esta imagem tentando fazer algo artístico… Apenas estava lá naquele momento, tinha a máquina e fiz a fotografia (William A. Anders)

As imagens mais desejadas pela NASA eram as que que se pudessem obter do lado oculto da Lua e que Frank descreveria mais tarde “como um deserto do Arizona numa noite sem luar e os céus brutalmente iluminados por estrelas”. A Terra, essa seria secundária. Anders recorda que, ao posicionarem a nave do lado oculto da Lua “de repente o céu ficou infinitamente negro; ficámos cercados por estrelas e quando olhei para baixo pareceu-me ver um buraco negro, sem estrela alguma, e de sentir os pelos a eriçarem-se… E, então, apercebi-me que se tratava da Lua que estava a bloquear a luz das estrelas. Estava mesmo muito escuro; tudo aquilo despertou em mim um sentimento animalesco.” Borman acompanha a narrativa de Anders, “estávamos a ver uma porção da Lua nunca antes percepcionada pelo olho humano. Pensei que poderia assemelhar-se àquilo que teria sido a Terra antes do surgimento de vida. Lembro-me de me sentir como se tivéssemos regressado ao início de tudo. Foi um momento muito pungente.” Lovell acrescenta, “o espaço é negro, negro… profundamente negro. Negro como a tinta, negro como o veludo. Não há qualquer cor no espaço, tal como não há na Lua. A Lua é só tonalidades de cinzento. A Lua é uma existência vasta, solitária e ameaçadora. Assemelha-se a nuvens de pedra pomes e não haveria de ser um sítio muito convidativo para se viver ou para se trabalhar.”

Assim que tinha um momento livre, Anders assumia a sua função de fotografar o satélite da Terra. “Era crateras atrás de crateras, atrás de crateras… Era interessante, mas ao fim de uma hora comecei a achar aborrecido”, narrou no documentário realizado por Emmanuel Vaughan-Lee em 2018. Entretanto, e através de um ainda insípido serviço de televisão a preto e branco, o mundo assistia encantado às imagens que ilustravam a desolada e estéril superfície lunar.

Não nos questionámos acerca da aparência da Terra (William A. Anders)

À quarta órbita em torno da Lua, Lovell, Borman e Anders ficaram finalmente em posição de avistar a Terra surgir iluminada sobre o estéril horizonte lunar. “Oh, olha para aquela imagem ali, a Terra a nascer… Uau! Que bonito! Esse filme é a cores, Jim?” precipitar-se-ia Anders, solicitando logo a seguir que Jim lhe passasse um rolo a cores para rapidamente tentar captar a Terra através da Hasselblad de 7mm que transportara a bordo. 

Com o obturador ajustado para 250 e abertura de f11, Anders cristalizava para a história uma das imagens mais vezes reproduzida de sempre. Baptizada como Earthrise (Nascer da Terra), viria a torná-lo famoso e a abalar o Mundo. “Vínhamos tão concentrados na Lua e, de repente, ali estava a Terra, tão longe e tão pequena que a podíamos tapar com o polegar. E era ali que estava tudo o que amamos. Estava tudo ali, naquele planeta azul”, recorda Borman. “Todos ficámos absolutamente esmagados com a beleza da Terra e mais ainda graças ao contraste que fazia com tudo o que ali havia, era a sua cor contra a negritude do espaço”, acrescenta Anders, e Frank atesta a importância da presença das câmaras a bordo. “Nunca tínhamos pensado fotografar a Terra, mas quando chegámos a este momento todos sabíamos que aquela fotografia tinha de realizar-se pois era a melhor de toda a missão.”

Ainda hoje, a Apollo 8 é conhecida como o voo do Génesis

Ainda naquela mesma noite de Natal, numa das últimas órbitas, Anders anunciou que a tripulação da Apolo 8 desejava partilhar uma mensagem “com todas as pessoas da Terra”, enquanto na televisão passavam as imagens do nascer do sol lunar, os três astronautas fizeram a leitura dos primeiros dez versículos do Livro do Génesis, da Bíblia. Anders começou No princípio Deus criou os céus e a terra. Era a terra sem forma e vazia; as trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre a face das águas. Deus Disse: ‘Haja luz’, e houve luz. Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas. Lovell prosseguiu: E Deus chamou à luz dia, e às trevas chamou noite. Passaram-se a tarde ¬e a manhã; esse foi o primeiro dia. Depois disse Deus: ‘Haja entre as águas um firmamento que separe águas de águas’. Então Deus fez o firmamento e separou as águas que ficaram abaixo do firmamento das que ficaram por cima. E assim foi. Ao firmamento, Deus chamou céu. Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o segundo dia. E disse Deus: ‘Juntem-se num só lugar as águas que estão debaixo do céu, e apareça a parte seca’. E assim foi. E Borman concluiu a leitura: Chamou Deus ao elemento seco terra, e ao ajuntamento das águas mares. E Deus viu que isso era bom. O astronauta despediu-se de seguida: “Da tripulação da Apollo 8, encerramos. Boa noite, boa sorte, feliz Natal e que Deus abençoe a todos, todos vós na boa Terra.”

A Terra era a única coisa iluminada, o resto era todo um vazio negro. E lá estava ela com um azul maravilhoso. Parecia um berlinde azul (Frank Borman)

No dia de Natal, a Apollo 8 despedia-se da órbita lunar e iniciava o regresso à Terra, alcançando as águas do Pacífico a 27 de Dezembro. “Quando aterrámos fomos bem recebidos, claro. Tinha sido o primeiro voo em torno da Lua e tínhamos chegado bem, mas em 1968 o país estava em turbulência. Martin Luther King e Bobby Kennedy tinham sido assassinados, estávamos em guerra e todos os dias recebíamos más notícias do que se passava no Vietname. O lançamento da Apollo 8 uniu o povo americano”, recordam os astronautas. O impacto no modo como as pessoas se sentiam acerca de si mesmas e do seu ambiente foi enorme. A fotografia Earthrise conseguiu originar o entendimento e a consciencialização do ser humano relativamente à posição que ocupa no universo apenas através do “vislumbre do lugar a que chamamos lar. Foi a primeira vez, a PRIMEIRA, que a pessoas tiveram oportunidade de saber qual era a aparência da Terra, de verem o sítio onde viviam visto do espaço. Por vezes penso que deviam ter enviado poetas porque não acho que tenhamos captado inteiramente a grandeza daquilo que vimos”, conta Borman. Lovell acrescenta: “apercebi-me do quanto somos insignificantes. Ao afastarmo-nos da Terra e ao vê-la a tornar-se cada vez mais distante, e ao pensarmos que talvez não voltássemos, pensei que seria bom as pessoas passarem pela mesma experiência pois não é possível percebermos o que aqui temos até deixarmos o planeta.” Com esta experiência, os astronautas acreditavam, de facto, que ao afastar-se de Terra poderiam aproximar as pessoas que nela vivem. “A fotografia tornou-se a marca registada da missão. As pessoas identificavam-se com ela porque sabiam que se encontravam naquele berlinde azul”, adianta Borman. Anders finaliza, “quando as pessoas tiveram tempo para contemplar tudo aquilo e tudo o que a fotografia significava percebeu-se que esta seria uma das mais importantes imagens do século XX”.

Uma imagem que faz o maior alerta de sempre

A revista Time encerrou o turbulento ano com foto de capa do “Nascer da Terra”, acompanhada da legenda “Alvorada”. E o New York Times abria o diário do Dia de Natal com as observações do famoso poeta e escritor três vezes celebrado com o Prémio Pulitzer Archibald MacLeish: To see the earth as it truly is, small and blue and beautiful in that eternal silence where it floats, is to see ourselves as riders on the earth together, brothers on that bright loveliness in the eternal cold – brothers who know now they are truly brothers. A célebre fotografia está também muito relacionada com o nascimento dos movimentos ambientalistas. Em Earthrise: How Man First Saw the Earth, Robert Poole defende que a mesma terá marcado o “nascimento espiritual do movimento ambientalista, o momento em que o sentimento da era espacial deixou de ser o que ela significava para o espaço para assentar no que significava para a Terra.” Terá também estado ligada à criação do Dia da Terra, em 1970, evento anual que promove o activismo e a consciencialização ambiental.

No final dos anos 60, as perspectivas ambientais e o activismo ganharam rapidamente terreno por toda a América e na Europa. Os grupos ambientais Friends of the Earth e Greenpeace foram fundados em 1969 e em 1971, respectivamente. O governo americano estabeleceu a Agência de Protecção Ambiental em 1970. Dezoito meses depois de William Anders fotografar a Terra a partir da Apollo 8, 20 milhões de pessoas saíram às ruas dos EUA para protestar contra a destruição ambiental no primeiro Dia da Terra. Kathleen Rogers, presidente da Earth Day Network, acredita que a fotografia em causa desempenhou um papel essencial. “Deu origem ao Dia da Terra, que agora conta com a participação de milhões de pessoas, e a um movimento ambiental que se manifesta em todo o Mundo. Antes as pessoas falavam acerca do modo como a exploração espacial tinha mostrado o quão únicos somos. Assim que a fotografia foi publicada, os membros do Congresso e os líderes mundiais começaram todos a falar da fragilidade da Terra. A Earthrise destacou a singularidade da Terra naquele enorme universo negro e consciencializou milhões de pessoas para o facto de o nosso planeta se encontrar tão sujo.”

Graças à sua história e poderosa mensagem, a fotografia Earthrise continua a despertar a consciencialização ambiental, lembrando que a Terra não é uma fonte na qual possamos fornecer-nos continuamente e que precisamos de preservá-la. A imagem terá despertado a atenção para o facto de a Terra, onde todos vivemos, aquela esfera azul naquela imensidão negra, significar de facto a própria fragilidade e a nossa unicidade.

Tendo completado 90 anos no passado dia 17 de Outubro, William Alison Anders jamais imaginaria que naquele dia em que entrou a bordo da Apollo 8 para empreender uma viagem à Lua afectaria tão radicalmente o modo como a humanidade se encararia a si mesma e ao destino do planeta a partir de então. 54 anos mais tarde, a sua fotografia permanece um símbolo não apenas da grandeza humana mas também da sua fragilidade e inegável irrelevância. Anders, que nos mostrou a nós próprios pela primeira vez na história, partiu no passado dia 7 de Junho.

Previous post

ROVOS RAIL soma e segue

Next post

NAS BANCAS, À SUA ESPERA!