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Descrito como um dos mais belos percursos de comboio do mundo, o The Jacobite liga Fort William a Mallaig num percurso de 135 quilómetros cumprindo-se através das Terras Altas escocesas em cerca de hora e meia de paisagens absolutamente maravilhosas

Fotos Dave Collier – West Coast Railways e D.R.

A bordo das carruagens vintage de primeira classe, é possível reconhecer a linha que se tornou famosa com o filme Harry Potter e a Pedra Filosofal, onde o comboio a vapor The Jacobite figurou como Expresso de Hogwarts e no qual Harry, Ron e Hermione viajaram partindo da Plataforma 9¾ da Estação de King’s Cross, em Londres, a caminho da escola de feitiçaria no início do período escolar. Com início nas Terras Altas escocesas, na cidade de Fort William, junto a Ben Nevis, a mais alta montanha britânica, esta viagem de comboio passa por colinas verdejantes, lagos de águas cristalinas, vales profundos e aldeias pitorescas. O ponto alto será para muitos a passagem pelo Viaduto de Glenfinnan, com os seus graciosos 21 arcos, curvas e colunas debruçados sobre o Loch Shiel e o monumento jacobita. Os entusiastas de Harry Potter reconhecerão, de imediato, não apenas a vista bem mas a locomotiva a vapor e as carruagens do suposto Hogwarts Express, na realidade The Jacobite da West Coast Railways. O comboio faz uma breve paragem na Estação de Glenfinnan, passando depois pelas adoráveis cidades de Lochailort, Arisaig e Morar. A última paragem verifica-se em Mallaig, situada na costa ocidental escocesa, que os passageiros poderão explorar durante cerca de uma hora e meia antes da viagem de regresso a Fort William. Ainda em Mallaig a proposta será a de aproveitar para dar um pequeno passeio e seguir até à Ilha de Skye a bordo de um ferry, mas atenção, o comboio a vapor The Jacobite opera apenas entre Abril e Outubro e será melhor reservar as passagens online o quanto antes para 2023, já que são muitos os dias do ano que vem em que as viagens se encontram absolutamente esgotadas.

Fort William

Fort William, An Gearasdan em gaélico e ponto de partida desta viagem, representa o segundo maior assentamento nas Terras Altas escocesas, situando-se a norte de Glencoe, a oeste de Aonach Mòr e a leste de Glenfinnan, sendo famoso como ponto de caminhada e escalada dada a proximidade da montanha de Ben Nevis e das montanhas Munro (com mais de 914 metros de altitude). O nome com que foi baptizada a cidade surgiu em honra de William of Orange, que ordenou a sua construção com o objectivo de controlar alguns clãs escoceses, mudando mais tarde para Maryburgh, Gordonsburgh, Duncansburg e novamente para Fort William, desta vez já em homenagem ao Príncipe William, Duque de Cumberland. Ainda antes da construção do forte, este território foi palco de duas importantes batalhas – a primeira e segunda de Inverlochy (séculos XV e XVII) – e no século XVIII ver-se-ia cercado durante duas semanas pelas forças jacobitas, que embora tivessem sido bem-sucedidas na tomada de Fort Augustus e de Fort George não lograram o domínio destas paragens. Aqui, nas proximidades de onde todos os anos se realiza o Fort William Mountain Festival, foram filmadas cenas célebres de filmes como Braveheart, Highlander, Harry Potter e Rob Roy.

Glenfinnan

No gaélico Gleann Fhionnain, esta vila situada na região de Lochaber nas Terras Altas escocesas, a meio caminho entre Fort William e Mallaig foi o palco do início da revolta jacobita de 1745, quando o Príncipe Charles Edward Stuart (Bonnie Prince Charlie) ergueu forças junto às margens do lindíssimo Loch Shiel, reclamando o trono de britânico em nome do seu pai, o rei James Stuart. A Batalha de Culloden, decorrida oito meses mais tarde, em 16 de Abril de 1746, em Inverness, encerraria a pretensão jacobita, ditando a fuga do príncipe que jamais voltaria a pisar solo escocês. Erguido em 1815 por Alexander MacDonald of Glenaladale, o Glenfinnan Monument assinalaria o comovente tributo aos homens que morreram pela causa jacobita no dramático cenário das Terras Altas escocesas. Junto às margens do Loch Shiel e cercado por impressionantes montanhas, o Glenfinnan Monument representa um verdadeiro tesouro escocês e um lugar de enorme tranquilidade a partir do qual se poderá imaginar o dia em que aqui se iniciou um dos mais importantes eventos da história escocesa: a Revolta Jacobita. Foram cerca de 1200 os highlanders que nestas margens juraram lealdade ao Príncipe Charles Edward Stuart e que, depois de hastearem a bandeira real e de beberem um brandy, partiram em campanha para recuperar o trono britânico para a casa de Stuart. Hoje é possível subir ao topo do monumento com 18 metros de altura e apreciar uma vista panorâmica absolutamente esmagadora das Terras Altas. Acrescentada em 1835, uma estátua do highlander desconhecido mantém o olhar sobre o território onde, em tempos, se jurou pela determinação de um território numa luta devastadoramente arrasada em Culloden.

Obra de engenharia levada a cabo entre 1897 e 1901, o Viaduto de Glenfinnan constitui um dos maiores edifícios inteiramente realizados em cimento. Com 380 metros de comprimento e 21 arcos, encontra a 30 metros de altitude o seu ponto mais alto, debruçando-se sobre o Rio Finnan. É, sem dúvida, um dos pontos altos do percurso do The Jacobite, figurando até nas notas de dez libras escocesas. O cenário absolutamente maravilhoso e a atmosfera que ali se vive atraem curiosos de todo o Mundo, tendo o viaduto representado palco de filmagens de vários filmes e séries de televisão, como Charlotte Gray, Stone of Destiny, The Crown e quatro dos filmes de Harry Potter, sempre através das cenas que incluem o Expresso de Hogwarts. O Viaduto de Glenfinnan (Gleann Fhionghain, em escocês) é sem dúvida uma das maravilhas deste percurso férreo que serpenteia entre lagos e montanhas, desfilando num cenário de permanente deslumbre. Havendo oportunidade, o The Jacobite costuma fazer aqui uma paragem criando deste modo as condições ideais para a realização de uma panorâmica absolutamente fantástica. Na Estação de Glenfinnan será permitido esticar as pernas e eventualmente visitar o West Highland Railway Museum, que se encontra localizado no, agora recuperado, antigo edifício da estação de comboios inaugurado em Abril de 1901. Com o declínio das viagens de comboio verificado na década de 60 em virtude da adesão massiva ao automóvel como novo modo de deslocação, a linha onde o The Jacobite corre actualmente esteve em risco de ser encerrada, o que não chegou a verificar-se. Fosse como fosse, para salvar o edifício da estação nasceu o Glenfinnan Station Museum em 1991, que agora ergue tributo àqueles que ali trabalharam narrando a história da West Highland Railway, da sua construção e desenvolvimento.

Lochailort, Arisaig e Morar

Lochailort, Arisaig e Morar são pequenas e encantadoras vilas tipicamente escocesas por onde o The Jacobite passa no seu percurso até Mallaig. Lochailort fica a norte do Loch Ailort, junto à famosa A830, a Road to the Isles, onde se destaca a capela católica romana de Our Lady of the Braes, cujas missas dominicais passaram a ser celebradas na Inverailort House, um antigo pavilhão de tiro do Clã MacDonald, um dos maiores clãs escoceses, e cuja obra foi acrescentada por Sir Alexander Cameron e mais tarde por James Head. A Inverailort House foi utilizada pelo exército britânico como base de treino durante a Segunda Guerra Mundial, tendo assistido à formação de oficiais britânicos em técnicas de espionagem, sabotagem e sobrevivência que mais tarde seriam adoptadas pela CIA. Curiosamente, um destes oficiais terá sido David Niven, o actor que deu vida a personagens de grandes sucessos cinematográficos como O Monte dos Vendavais, Os Canhões de Navarone ou Por Favor, Não Coma as Margaridas. O próprio cenário de Lochailort surgiria nas telas do cinema em diversos filmes, dos quais se destaca Ondas de Paixão, de Lars von Trier. Inverailort House, outrora magnífica e raramente desprovida de menos de 20 convidados, encontra-se agora em ruínas e ao abandono, tendo no ano passado sido comparada à lendária Manderley (pós incêndio), da obra de Daphne du Maurier, Rebeca, pela revista britânica Country Life.

A cerca de 11 quilómetros de Mallaig, Arisaig ou “baía segura” situa-se na costa ocidental escocesa, tendo no seguimento das incursões vikings do século VIII integrado o Reino das Ilhas, uma dependência norueguesa. Nos finais do século XI tornar-se-ia escocesa em virtude de um acordo celebrado entre Malcolm III da Escócia e o rei norueguês prolongando-se a fronteira até à costa mas no século seguinte Arisaig já pertencia ao povo nórdico-gaélico que resultara da adopção dos costumes gaélicos pelos noruegueses ali instalados. Arisaig e toda a região das Terras Altas terá ao longo do tempo sido palco de acesas e violentas escaramuças entre clãs. Já no século XVIII terá sido a partir de aqui que Bonnie Prince Charlie terá partido rumo a França após a derrota jacobita em 1746 para nunca mais regressar a solo escocês. O ponto de onde terá partido encontra-se assinalado com um marco junto ao Loch nan Uanh, a menos de cinco quilómetros. Da tranquila aldeia de Arisaig é possível fazer a ligação até às chamadas Small Isles, um pequeno arquipélago nas Hébridas Interiores (Muck, Rum e Eigg) a bordo do MV Sheerwater, que opera diariamente entre Abril e finais de Setembro. E se até agora se recomendava a estada na Arisaig House, uma ilustre casa de campo integrada no espectacular cenário das Terras Altas e com olhar pousado sobre o Loch Nan Uamh, agora, após a sua venda, recomenda-se pelo menos uma visita tal é a sua beleza e importância arquitectónica. Concebida pelo conceituado arquitecto inglês Philip Webb, sofreu um grande incêndio nos anos 30, tendo sido reconstruída no final dessa mesma década por IBM Hamilton, mantendo-se da construção inicial alguns elementos dos quais os traços Art Deco e Arte Nova são um exemplo. De interesse histórico e aquitectónico, esteve no edifício localizado o boutique hotel da região que John e Ruth Smither geriram desde 1981 e até 2021. O encerramento coincide com o de outras casas de campo que abandonaram o mercado hoteleiro, tendo sido adquirido pelo multimilionário britânico Jeremy Hosking, também proprietário do Castelo de Kinloch, na Ilha de Rum, por 3 milhões e 270 mil euros.

A apenas cinco quilómetros de Mallaig, Morar, a última vila por onde passa o The Jacobite, situa-se na costa ocidental, numa região considerada como ponto de excepcional beleza e que paralelamente com outras 39 áreas se encontra protegida restringindo-se certas formas mais perversas de desenvolvimento nas suas imediações. Trata-se de um território famoso pelas suas praias, que são conhecidas como as “White Sands of Morar”, uma das quais serviu de cenário no filme Local Hero, de Bill Forsyth, com Burt Lancaster e música de Mark Knopfler, e o anteriormente referido Ondas de Paixão. Destino preferido de Inverno do compositor inglês Arnold Bax durante a década de 30, Morar fica nas imediações do Loch Morar, o mais profundo lago de água doce da Europa, com 310 metros de fundo e o seu próprio monstro, o Morag.

Mallaig

O The Jacobite segue, então, até ao destino final da rota: Mallaig. Foi fundada em meados do século XIX, quando Lorde Lovat, o proprietário da região, dividiu a quinta numa série de parcelas de terra com o intuito de atrair os seus arrendatários que viviam junto ao Loch Morar e ao Loch Nevis a ali se instalarem. Mallaig acabou por estabelecer-se como vila piscatória e hoje em dia conta com um porto pesqueiro agitado e um movimentado terminal marítimo de onde é possível partir com destino à Ilha de Skye ou às Small Isles. Chegando a Mallaig, o The Jacobite faz uma pausa de cerca de uma hora e meia e que permitirá o passeio nesta região. De imediato absorve-se a atmosfera local, com as lojas, os bares e os restaurantes a transpirar a tipicidade local e a inconfundível alma escocesa. Tempo ainda para visitar o Mallaig Heritage Center, onde entre outros aspectos culturais é possível aprofundar conhecimentos sobre as famosas, e eventualmente esquecidas, Highland Clearances (despejos de inquilinos nas Terras Altas e nas ilhas), que muitos caracterizam como genocidas, estando fortemente ligadas ao desaparecimento de toda a tradição dos clãs das Terras Altas. A par com a pressão económica que levou os proprietários a expulsar os seus inquilinos de modo a poderem converter as terras em zonas de pastoreio de ovelhas, que era mais lucrativo, a fome da batata também contribuiu em larga escala para que os highlanders não vislumbrassem alternativa à emigração para países como o Canadá e os EUA. A Batalha de Cullonden, que arrasaria o sonho jacobita e ficaria marcada na História como o passo decisivo para o fim do sistema de clãs, juntamente com as expulsões decorridas no século seguinte, seria decisiva para o desaparecimento de um estilo de vida e de toda uma cultura que ainda hoje se recorda com um certo romantismo. Passada a pausa que nos proporciona uma autêntica viagem no tempo e em que mais parece que as próprias Highlands fazem questão de nos recordar aqueles episódios do século XVIII, o The Jacobite parte de regresso a Fort William. Com um Jacobite High Tea a aquecer-nos as mãos e a alma e que tivemos a previdência de encomendar aquando da reserva dos bilhetes, vamos saboreando as sandes de queijo cheddar com maionese, fiambre e galinha. O scone com doce de morango e os bolos caseiros aguardam-nos a seguir, enquanto nos permitimos afundar-nos em pensamentos e no conforto da carruagem em primeira classe que, ela própria, recria todo o ambiente vintage do passado, à medida que a locomotiva a vapor vai engolindo quilómetros e o apito ajuda a imprimir-nos na memória a experiência de desfrutarmos daquela que é considerada uma das melhores viagens de comboio de todo o Mundo.

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