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PEQUIM – a cidade dos dragões ondulantes

Fundada pela dinastia Yuan entre os séculos XIII e XIV, Pequim deixa-se descobrir por entre a humidade que abafa o corpo e a névoa que deforma os contornos dos edifícios milenares. Organizando-se em anéis concêntricos em torno da Cidade Proibida, a urbe foi-se edificando por entre um emaranhado de letreiros ilegíveis e construções de várias épocas, que crescem em direção às nuvens, acolhendo mais de 12 milhões de habitantes.

Texto e fotos Maria João Castro

A estada recai num hutong local – nome que se dá aos bairros antigos – que parece saído de uma das telas do português Fausto Sampaio, um dos primeiros artistas do século XX a pintar o Oriente chinês.

A primeira visita é à Praça Tiananmen, a maior praça do planeta. Ela constitui a passadeira vermelha para a mítica Cidade Imperial a norte, o mausoléu de Mao Tse Tung a sul, e o Museu Nacional a este. Foi daqui que Mao proclamou a república do povo para 500 mil pessoas, dando início à Revolução Cultural.

A Cidade Proibida, assim denominada devido ao facto de ter sido durante séculos um local só acessível ao imperador e à sua corte, era a capital do antigo Império do Sol Nascente. Construída no século XV, ela foi ao longo de quinhentos anos residência de duas dúzias de imperadores. Os seus 720 mil metros quadrados foram edificados dentro de uma escala grandiosa que oprime os humanos, reduzindo-os

à sua insignificância. São 980 edifícios, 8707 salas – mas chegaram a ser mais de vinte mil –, emoldurados por uma muralha de quase oito metros de altura. No seu interior, pavilhões, pátios e jardins labirínticos são rematados por telhados duplos pontiagudos ou coberturas sobrepujadas de dragões ondulantes, exibindo-se numa cinematografia invulgar. À saída vêm-me à lembrança as palavras de Eça de Queiroz em “O Mandarim”, sobre a Cidade Proibida: “como eu desejaria penetrar-lhe os segredos e ver desenrolar-se, a magnificência bárbara dessas dinastias seculares(…)”.

Não muito distante situa-se o Parque de Beihai. Por entre o recorte da madeira, fontes e repuxos sonorizam o verde envolvente. Um pequeno terraço de pedra trabalhada levita sobre as águas serenas do espelho aquático, onde ziguezagueiam embarcações de recreio. É aqui que todas as manhãs um grupo de aficionados de caligrafia, cada um com um pincel de cerca de um metro de comprimento e molhado em água, escreve carateres sobre o chão, que se vão evaporando à medida que o dia cresce.

O destino seguinte é o Templo de Lama, um complexo do século XVII que se revela em cinco pátios, num percurso singular. Serviu de residência oficial a eunucos, foi transformado em residência oficial pelo imperador Yongzheng, e, por fim, tornou-se sede de lamas budistas da Mongólia e do Tibete. Espécie de memorial de uma pátria que só sobrevive nos compêndios de História, o mosteiro abre-se exalando um aroma adocicado a incenso. Os telhados esculpidos com demónios e deuses alojam dragões nos beirais, quais guardiões protectores que guiam o visitante até ao último pavilhão, santuário lotado de velas votivas que tremeluzem, iluminando a arquitetura manchu, mongol e tibetana. Contudo, o que torna este recinto único é a estátua de Buda com dezoito metros de altura, esculpida a partir de uma única peça de madeira de sândalo – a maior do mundo no género. Ouve-se um cântico que se repete interminavelmente como um mantra, até que, por fim, os monges se recolhem, meditabundos.

A visita seguinte não dista muitos metros: o Templo de Confúcio, o grande filósofo, político e educador, que viveu entre os séculos VI e V a.C.. O conjunto foi construído em 1302, durante a Dinastia Yuan. Ali se realizavam os ritos em homenagem ao mestre, nas dinastias Yuan, Ming e Qing. Neste conjunto de construções, mais antigo do que o Palácio Imperial, está concentrada a essência do milenar pensamento confuciano, que tem vindo a desempenhar um importante papel na história cultural da China. Contudo, a particularidade que enfeitiça é a quietude e a ausência de qualquer espécie de som que dele emana, inundando os jardins, os pavilhões e os recantos, onde a brisa ameniza a elevada temperatura do início da tarde. As decorações dos telhados, feitas de dragões flavescentes sobre fundo azul, as aves que ascendem da profundidade verde, os carateres dourados escavados da madeira vermelha, emprestam ao conjunto uma impressão efabulada.

Uma neblina espessa solta-se do chão, indefinindo-o. As velhas shop-houses, edifícios híbridos de dois pisos com loja no rés-do-chão e habitação no primeiro andar, mostram os vendedores agachados, aguardando clientes.

Os passos encaminham-se rumo ao Templo do Céu, o templo taoista mais importante da cidade. Construído a partir de 1420 e utilizado pelas dinastias Ming e Qing para pedir a intervenção celestial em benefício das colheitas agrícolas, é hoje património da UNESCO. Os vários pavilhões dispersam-se por um parque de grandes dimensões, mas o recinto principal – a Sala de Orações pelas Boas Colheitas – empoleira-se sobre três terraços de mármore branco, apresentando um telhado triplo composto por telhas de cor azul rematadas por uma bola dourada que o assemelha a três guarda-sóis sobrepostos, dotando-o de uma elegância invulgar.

No parque que circunda o templo, a população exercita-se: entre o Tai Chi Chuan, o Chi Kung e as artes marciais, é todo um leque de movimentos redondos que fluem no ar.

É altura de abandonar os grandes arranha-céus de Beijing e sair em direção ao campo. A noventa quilómetros de Pequim, o teleférico aguarda junto a uma placa da UNESCO, a porta de entrada eleita para um dos maiores símbolos do Império do Meio, que irá conduzir-nos ao troço denominado Jinshanling, originalmente construído durante a dinastia Ming e que nos permite aceder… a uma das secções da Grande Muralha da China. Serpenteando ao longo de sete mil quilómetros de elevações, planaltos e planícies, a estrutura abre-se num parapeito de ameias com cerca de oito metros de altura e sete de largura, encontrando-se intercalada por torres de vigia, bastiões de sinalização, habitação e armazenamento.

Piso a crista do dragão ondulante de pedra, estirando-se como uma longa serpente que desenha a orla da montanha. O peso dos séculos confere-lhe poesia e uma existência para além de si próprio. A construção confunde-se com o relevo, humanizando-o. A cadeia montanhosa, de sensual contorno, concentra as poderosas forças telúricas dos séculos, sobrepujada pela rigorosa geometria dos baluartes, que, adaptando-se às encostas rochosas, as vai prolongando. A muralha é o testemunho de uma utopia belíssima: ao longo de quase dois mil anos, as várias dinastias acreditaram na construção de uma barreira defensiva gigantesca, capaz de travar as invasões de tribos estrangeiras, calculando-se que tenham morrido entre dois e três milhões de chineses na sua construção.

No dédalo de colinas, cada passo não voltará a repetir-se. A humidade pesada contribui para fazer a figura humana encolher e o espaço agigantar-se, alterando as proporções. Talvez por isso, à medida que me vou afastando do perfil pétreo, vejo-o como o folho de uma saia “aflamencada”, uma crista de pedra que se infiltra pelo abismo inundado de sombra. À medida que a distância aumenta, o gigante adormecido cerca-se de nuvens, tornando-se misterioso e escondendo-se sob o diáfano manto do tempo.

Partitura simultaneamente real e fingida, Pequim evoca um palimpsesto de glórias e infortúnios, cruezas e desvarios, grandezas e multiplicidades que se cristalizam de beleza, eternizando-se numa modernidade inolvidável.

“O bom viajante

não tem planos fixos

nem a intenção de chegar.”

Lao Tsé, filosófico chinês

Maria João Castro, Transiberiana, Chiado Editora, 2014

 

 

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