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Do Castelo até às Avenidas Novas, Lisboa recorda a marca do tempo que por ela já passou. Da presença romana à passagem de cruzados, de catástrofes naturais, a epopeias marítimas, conspirações políticas e assassinatos no seio da família real, a capital portuguesa já testemunhou um pouco de tudo. Venha connosco neste périplo pela magnífica cidade e história de Portugal!

Texto Carla Santos Vieira   Fotos Carla Santos Vieira e D.R.

Lisboa é Castelo de São Jorge, Graça das ruelas típicas e crianças de Alfama. Cidade antiga, com celtas na memória e os assentamentos de povos ibéricos pré-romanos a estabelecer-se na encosta do castelo, uma Olisipo pré-romana que tinha o porto como fundeadouro e base de tráfego marítimo e comércio com os fenícios. Aos metais preciosos, base das trocas de então, juntar-se-ia o comércio de sal, peixe salgado e cavalos puro-sangue lusitano. Nas lendas foi criada por Ulisses, o herói grego Odisseu que teria dado origem a um povoado cercado por sete colinas. De Olysipo, passaria a Olisipo, Ulisippo, Olisipo e Olisipona e daqui para Lisipona, Lisibona, Lisbona, Lixbona, Lixboa e, finalmente, Lisboa, explicando-se assim a razão da abreviatura Lx, com a evolução do nome da cidade a testemunhar a presença das principais culturas que marcaram a nossa cultura e na qual a árabe se inclui. A Olisipo romana descia a colina do Castelo de São Jorge até ao Terreiro do Trigo, o Campo das Cebolas, a Ribeira Velha e a Rua Augusta, restando ainda inúmeros vestígios, como por exemplo as ruínas do teatro romano, do século I, situadas na Rua de São Mamede, em Alfama. Naquela altura, a elite romana divertia-se a frequentar este espaço e deliciava-se com garum, um alimento à base de peixe que se conservava em ânforas e que era transportado para Roma e para todo o império. O vinho e o sal eram outros produtos amplamente comercializados na realidade de então. Quando caiu o império romano, Lisboa tornou-se presa de invasões bárbaras, testemunhando a chegada de alanos, vândalos, suevos e visigodos, estes últimos a serem bem sucedidos no seu domínio. Seguiu-se a presença muçulmana, com a invasão da Península Ibérica em 711 no seguimento de uma guerra civil do reino visigótico, pelo que Lisboa (na altura Alusbona) se torna um importante centro administrativo e comercial. A cidade viveria o seu apogeu no século X, com mais de cem mil habitantes e muitas vezes maior que Paris e Londres. Renovada seguindo a influência do Médio Oriente, Lisboa vê nascer uma grande mesquita, um castelo, um palácio do governador, uma almedina e um alcácer. Alfama cresce então junto ao núcleo urbano e Almada (al-Madan) nasce na margem sul do Tejo com o principal objectivo de proteger a cidade. Com a ajuda dos cruzados, D. Afonso Henriques inicia um novo capítulo na história de Lisboa e obviamente do País, tomando posse da mesma a 1 de Novembro de 1147. Começa, então, toda uma série de transformações, da qual é exemplo a reconversão da mesquita de sete cúpulas em Sé Catedral. Lisboa mantém o seu crescimento como ponto de encontro mercantil, abrindo novas vias para os portos da Europa do Norte e tornando-se ainda mais rica e dinâmica no que respeita aos povos que a frequentavam.

Lisboa, capital da nação

Com o aumento da segurança alcançado com a conquista dos algarves no século XIII, Afonso III transfere para Lisboa a capital do território. Assiste-se no reinado de D. Dinis à construção do Terreiro do Paço, com drenagens a reclamar terreno ao mar, e o Rossio passa a desempenhar o centro da cidade, que entretanto se contava como uma das mais importantes do comércio internacional. A famosa muralha fernandina é erguida no seguimento do cerco castelhano a Lisboa. Abaixo da mesma ficariam instaladas as classes mais desfavorecidas, os jornaleiros, os mercadores de rua, os pescadores e os agricultores. Surgiriam nessa altura também as ruas dos ofícios, que agrupavam artífices dedicados à mesma arte (Rua do Ouro, Rua da Prata, Rua dos Fanqueiros), enquanto os judeus se refugiavam na judiaria que ocupava as freguesias de Santa Maria Madalena, São Julião, São Nicolau e a Rua Nova dos Mercadores, onde estava localizada a grande sinagoga. Os muçulmanos, por sua vez, estavam localizados na Mouraria, com a mesquita situada na Rua do Capelão. Estes não eram nem tão polidos nem tão educados como os judeus, tendo a sua elite partido para o Norte de África, e cultivavam vegetais nos arredores da cidade. Provém daqui o termo alfacinha, dadas as alfaces que plantavam e que não eram consumidas no norte de Portugal. Ambos judeus e muçulmanos pagavam impostos especiais, e também deste facto chegou até hoje a expressão saloio, deturpação da palavra saloia, o imposto pago por muçulmanos que cultivavam as suas hortas nos arredores da cidade. O despertar para a prosperidade lisboeta seria interrompido em 1290 com o primeiro grande terramoto, que destruiu parte dela e a que se seguiram outros tantos de menor dimensão. Chega depois a fome, em 1333, e em 1348 a peste negra, que arrasaria metade da população.

O salto para a prosperidade

A Crise de Sucessão, em 1383-85, viria abrir um novo capítulo na história da capital portuguesa. Na realidade, havia de facto o problema relativo a quem deveria justamente ocupar o trono, no seguimento da morte de D. Fernando. Castela, aliada da aristocracia conservadora católica e medieval portuguesa, seria a opção das classes elevadas, já que partilhava dos mesmos interesses e culturas, enfatizando a distinção social com base na posse de terras, privilegiando o espírito de cruzada contra mouros do Norte de África e defendendo a união de toda a Hispânia. Já os mercadores ricos e pluralistas de Lisboa receavam que a união a Castela encerrasse as ligações comerciais com os ingleses, com o Norte e também com o Norte de África, passando assim a defender a ideia de que deveria ser D. João I, o Mestre de Avis, a ocupar o trono português. O Cerco de Lisboa por Castela e a Batalha de Aljubarrota confirmariam a dinastia de Avis e o surgimento de uma nova aristocracia portuguesa, formada então por mercadores lisboetas. No bairro de Santos assistir-se-ia, então, à construção de palácios e de paços dos novos nobres burgueses, período em que também nascia a Igreja do Carmo e os primeiros edifícios de habitação com vários andares numa Lisboa de ruas estreitas e tortuosas, de terra batida e onde as casas se sucediam a hortas e pomares. Com o crescimento da cidade, que representa cada vez mais o ponto de organização comercial, dá-se o abandono do regadio e inicia-se a importação de trigo. Em 1417 surge a primeira proibição de abandono de lixo no chão junto ao Mosteiro do Carmo e noutras áreas da cidade e em 1426 torna-se mesmo proibido lançar lixo e deixar galinhas soltas pela rua fora. Um eventual problema viria a traçar uma determinante alteração no rumo do desenvolvimento da cidade. Com o avanço do Império Otomano e a hostilidade turca a ameaçar as trocas comerciais até então estabelecidas, os mercadores de Lisboa, descendentes de muçulmanos ou judeus, procuram descobrir a fonte dos produtos até então comercializados por intermediários. Inicia-se, então, com o Infante D. Henrique e o apoio da Ordem de Cristo ao criar escolas de marinheiros e ao partilhar conhecimentos e recursos, o movimento das Descobertas portuguesas. Com a sua morte começa a iniciativa privada, personificada em Fernão Gomes, o primeiro mercador lisboeta com o monopólio comercial. A Lisboa começam a chegar ainda mais produtos, como a cana-de-açúcar e o vinho da Madeira, o trigo de Ceuta, o almíscar, o índigo, o algodão do Norte de África e o ouro da Guiné. Da índia e do Oriente chegavam a pimenta, a canela, a noz-moscada, plantas medicinais, algodão, diamantes, especiarias, porcelanas, seda, escravos, pau-Brasil… Lisboa tornava-se um mercado para os apreciadores de luxo de toda a Europa, mantendo controlo do comércio de então, que se estendia desde o Japão até Ceuta. Na verdade, no século XVI, Lisboa era a cidade mais rica do mundo, recebendo comerciantes de todos os seus cantos. A corte de D. Manuel I organizava as suas festas realizando desfiles de leões, elefantes, rinocerontes e camelos. A cidade acolhia já cerca de 200 mil habitantes, nascendo o actual Bairro Alto, à época chamado de Vila Nova dos Andrades, tendo então representando o mais rico bairro lisboeta. Em pleno século XVI nascia o Mosteiro dos Jerónimos, a Torre de Belém, o Forte de São Lourenço, no Bugio, o Palácio Real, o Hospital de Todos os Santos e é também nesta altura que fica determinada outra atenção com o pavimento das ruas, iniciando-se uma generalização da aplicação da calçada portuguesa. No universo da ciência e das letras, Lisboa assiste também a um florescimento intelectual, com a presença de nomes como Damião de Góis, Pedro Nunes, Garcia de Orta, Duarte Pacheco Pereira, Camões, Bernardim Ribeiro e Gil Vicente.

O final dos tempos dourados

No seguimento da expulsão dos judeus em Espanha, muitos se haviam refugiado em Portugal, representando um quinto da população lisboeta e tendo mais tarde sido obrigados a converter-se à religião cristã, tornando-se cristãos novos. Deste modo conseguiam manter a expansão dos seus negócios, representando uma considerável fatia do domínio do comércio mercantil. Com a chegada da Inquisição e com o contributo dos cristãos–velhos, a perseguição aos judeus torna-se mais forte e intensa, culminando nos autos de fé, nos quais se verifica uma elevada mortandade. A Inquisição acaba por funcionar como instrumento de controlo social dos antigos cristãos-velhos contra quase todos os mercadores lisboetas. A prosperidade da capital acaba por ser destruída neste clima de perseguição e de intolerância, com muitos a fugir para Inglaterra e para a Holanda e levando consigo o conhecimento que Portugal levara tanto tempo a adquirir e que lhe garantira o sucesso financeiro, com as mentalidades feudais a tomar posse e Inglaterra e a Holanda a arrasar com os mercados nacionais. É nesta altura que um vulnerável D. Sebastião cede perante a nobreza no ensejo de conquista de território no Norte de África, empresa que lhe custou a vida em Alcácer Quibir em 1578 e a Portugal a independência, com Filipe II de Espanha e I de Portugal a assumir o controlo territorial e governamental em 1580. Cumpria-se o sonho do pai do monarca espanhol, Carlos I, que em tempos afirmara que “se fosse rei de Lisboa, seria em breve rei do Mundo”. É verdade que Espanha passou a dominar o futuro de Lisboa, mas esta não era já a mesma. Ao perder grande parte dos portos comerciais e arrasada grande parte da sua frota com a destruição da Invencível Armada, Lisboa perdia importância a passos largos, caindo em profunda ruína. Chegava depois o Terramoto de 1598 e a peste, contribuindo também para o seu declínio económico e para o aumento do desemprego, da miséria e aumento o da criminalidade. Com a revolta de 1636 dos catalães perante a opressão das taxas mercantis, Portugal é envolvido no sentido de derrotar os mesmos e é nesta precisa altura que os mercadores lisboetas, juntamente com a pequena e média nobreza, convencem D. João IV a reclamar o trono verificando-se, então, a Restauração. Na época, a ruína económica acaba por resolver-se graças ao ouro oriundo do Brasil. Com este, novas obras se realizam. Lisboa assiste à chegada do Barroco, à construção da Igreja de Santa Engrácia e do Aqueduto das Águas Livres. O povo, ao invés, vive em condições de pura miséria, sendo desta época as primeiras descrições da cidade como um lugar sujo e degradado. Às 09.40 da manhã de 1 de Novembro de 1755 tudo mudaria para sempre na capital portuguesa. Dia de todos os santos, a maioria da população encontrava-se já na missa, tendo em casa deixado velas acesas, o método de iluminação mais utilizado na época. De repente um ronco soou como que vindo das entranhas da terra e segundos depois não havia mais pedra sobre pedra. Lisboa sucumbia à trepidação provocada pelo Terramoto que não mais sairia das mentes lisboetas. Edifícios desmoronaram-se, destruindo-se para sempre, como o Hospital de Todos os Santos, o Convento do Carmo e o Tribunal da Inquisição. Fugindo das igrejas e das ruas apertadas que desmoronavam como castelos de cartas, a população dirigiu-se para o Terreiro do Paço, terreno amplo e supostamente mais seguro, apenas para ver o mar a recuar revelando navios afundados e tesouros perdidos e depois assistir à chegada de ondas com não menos de dez metros de altura e que engoliram a cidade. Os fogos que estas águas não apagaram duraram ao todo cerca de cinco dias. Das 20 mil casas mais humildes pertencentes ao povo, 17 mil perderam-se. Salvou-se o Bairro Alto e Campo de Ourique, com cerca de 35 mil mortes a contabilizar. Seguiram-se as pilhagens e o inevitável descontrolo total. Lisboa acordava ferida e o povo com ela.

A reforma de Pombal

Desta dura provação enfrentada por Lisboa e pelas suas gentes resultaram as condições ideais para que alguém muito ambicioso visse agora o momento acertado de tomar posse dos destinos da nação. Sebastião de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal, arregaçou as mangas e só descansou depois de “enterrar os mortos e cuidar dos vivos” e de reconstruir uma Lisboa mais moderna e mais próxima dos ideais do universo iluminista, já instalado noutros países europeus. O Marquês aproveita o distanciamento de D. José da capital e reduz de imediato o poder da igreja, expulsando os jesuítas do país. Limita ainda o poder da aristocracia territorial conservadora, perdendo a vida diversos elementos da família Távora, que serviria de exemplo para todos os outros. A Inquisição é extinta e os cristãos-novos recuperam a sua posição, ocupando também a partir de agora cargos governamentais de relevo. Segue-se o apoio à indústria, o estabelecimento de fábricas em Lisboa e noutras cidades. Mas antes de tudo, Pombal procede à reconstrução de Lisboa recorrendo ao ouro que chegava do Brasil e que terminaria apenas em 1806. Estima-se que para o efeito terão sido empregues 20 milhões de cruzados. O projecto da Baixa, elaborado por Eugénio dos Santos e Carlos Mardel, apostava agora em ruas e avenidas largas e ortogonais e as construções baseavam-se no conceito da gaiola pombalina. A Rua Augusta passaria a constituir o centro estruturante da cidade, que a norte corria para o Rossio e a sul para o Terreiro do Paço. Atraída pela necessidade de mão-de-obra, a população cresce até aos 250 mil habitantes, instalados agora na Estrela, no Rato, em Alcântara, na Ajuda, Sapadores e Amoreiras. Para estimular a classe média, Pombal aposta também na criação dos primeiros cafés, como o Martinho da Arcada, no Terreiro do Paço, e o Nicola, no Rossio, que passaram a ser frequentados por uma classe média burguesa autoconsciente, formada por cristãos novos e velhos e que dará origem aos movimentos políticos pelo liberalismo e pela república. Com a morte de D. José sobe ao trono D. Maria I, também conhecida como Viradeira, já que privilegiou os conselhos dos nobres conservadores e do clero, demitindo o primeiro–ministro e revertendo algumas das suas reformas progressistas. Responsável pela construção da Basílica da Estrela, D. Maria I assistiria no entanto a um deteriorar das condições económicas que muito haviam melhorado com Pombal. A miséria e a criminalidade instalaram-se novamente em Lisboa, criando-se uma polícia especial liderada por Pina Manique. Maçons, jacobinos e liberais eram presos e torturados e expulsos; os jornais submetidos à censura e os cafés vigiados por agentes à paisana. 

Do Iluminismo ao Liberalismo

1776 chegaria com a Revolução Americana a influenciar toda a Europa na adesão aos ideais liberais e em 1789 dá-se a Revolução Francesa. Napoleão autonomeia-se imperador e bloqueia o continente proibindo o comércio com Inglaterra. Como aliado deste país, Portugal recusa participar no bloqueio e Napoleão envia Junot para o território nacional, instalando-se este no Palácio de Queluz. Apesar de bem recebido pelos lisboetas, não tarda em deixar perceber que as políticas de Pombal jamais voltarão a ser implementadas. Antes pelo contrário, Portugal seria um país a dividir e Lisboa incorporada no império francês. É então que se recorre à velha aliança com Inglaterra, que vem em nosso auxílio e, em menor número, as tropas francesas são obrigadas a fugir. Lisboa teria, no entanto, de abrir os portos do Brasil a Inglaterra. Em Portugal continental, a presença britânica executava os burgueses partidários da causa francesa e, saturados, seriam, então, os burgueses do Porto que se revoltariam contra o colonialismo inglês, jurando fidelidade ao liberalismo e aos seus ideais aquando do golpe de estado realizado em 1820. Inicia-se uma guerra civil, com D. Miguel a liderar os conservadores absolutistas contra as forças constitucionalistas liberais de D. Pedro, seu irmão, que vence em 1834 acabando por não realizar as mudanças com que o povo sonhava. O País ver-se-ia dividido entre dois grupos radicais e neste ambiente caótico as potências do norte preparavam-se para dividir as colónias e províncias de Portugal. Desta época guardam-se, no entanto, a início da iluminação pública primeiro com lamparinas de azeite, depois com óleo de peixe e mais tarde com lâmpadas de gás, a construção de uma rede de estradas, com o início das ligações em barcos a vapor e com a construção de caminhos-de-ferro cujo primeiro troço só será inaugurado em 1856 dados os conflitos entre conservadores e liberais. O Brasil torna-se independente e deixam de chegar a Lisboa os rendimentos obtidos com o ouro. Lisboa torna-se uma cidade mais estagnada, perdendo importância e abraçando novamente a miséria. De quinta cidade mais populosa da Europa passa para décima… A situação agrava-se rapidamente, com Lisboa a ser encarada como uma cidade pobre e suja, uma extensão do Norte de África, como gostavam de caracterizá-la a França, a Inglaterra e a Alemanha, um território sem capacidade para se governar a si próprio. Começam as primeiras emigrações. Muitos pobres partem para o Brasil não para gerir terras, mas para nelas trabalharem para sobreviver, enquanto a classe alta vive como que cega, copiando o estilo de vida dos seus pares do norte da Europa mas com base numa exploração rural ultrapassada e deficitária e assente num proteccionismo injustificável, orbitando a corte real em busca de subsídios e suportada por impostos recolhidos aos pobres. A corrupção e a inércia grassam pela sociedade lisboeta fora, distinguindo-se no entanto personalidades como Fontes Pereira de Melo, que defende a liberalização da economia e a industrialização. Nascem as estações de comboio de Santa Apolónia em Lisboa e do Rossio, no Porto, marcando o início desta linha de caminho-de-ferro, a luz eléctrica chega às ruas lisboetas e para se mudar a imagem de uma cidade suja e decadente aplicam-se azulejos nas fachadas das casas ou procede-se à sua pintura em tons rosa. Iniciam-se os sistemas de canalizações, esgotos e de tratamento de águas e recalcetam-se as ruas com a técnica da calçada portuguesa generalizada por toda a cidade. Surgem ainda os americanos, automóveis colectivos sobre carris e puxados a cavalo que em 1901 viriam a dar lugar aos eléctricos que ainda hoje conhecemos. Surgem os elevadores e o centro cultural da cidade instala-se no Chiado, com clubes como o Grémio Literário, de Eça, Garrett, Ortigão, Junqueiro, Oliveira Martins e Herculano, e novos cafés como o Tavares e o Café do Chiado. Em 1878 manda-se demolir o Passeio Público para ali se deixar nascer a Avenida da Liberdade. Acima dela, ergue-se a Praça Marquês de Pombal e das novas avenidas para a nova Lisboa. É nestas vias que se assiste ao nascimento de palacetes para as elites lisboetas. Novos bairros passam a estender-se a oeste, como Campo de Ourique, e a leste, como a Estefânia. Lisboa é então uma nova cidade, com centro geográfico na Praça Marquês de Pombal e a Baixa como localização de lojas de destaque. A Oeste ficariam as habitações das altas classes médias e burgueses ricos, a leste as pequenas classes médias e o povo. As touradas e o fado transformam-se em entretenimentos populares muito procurados, o teatro de revista conquista as audiências e nascem os primeiros jardins públicos, com o Jardim da Estrela a encabeçar o primeiro onde os burgueses passeavam ao fim-de-semana. A classe alta passa a ser constituída por nobres conservadores, burgueses titulados e brasileiros (pobres emigrados entretanto enriquecidos e com vontade de serem aceites nos altos círculos sociais). Ao invés, as classes pobres crescem muito, com os proletários que aqui chegam para trabalhar em fábricas e que viviam em bairros miseráveis e degradados. Os liberais das classes médias mantêm o pagamento de impostos para garantir os luxos das classes mais altas. Seria inevitável o nascimento de uma aliança entre os proletários mais educados e as classes médias, nascendo um liberalismo radical, ou republicanismo.

O fim da monarquia e a implantação da república

Com este movimento, surge então o Partido Republicano, que defende o sufrágio universal, o fim de privilégios à Igreja Católica e das rendas aos nobres e o derrube da classe política desacreditada pela corrupção e pela incompetência. O país entretanto encontrava-se cada vez mais endividado e mais dependente dos países do norte, sendo que sofreu ainda mais uma humilhação com o episódio do Ultimato Inglês, que afinal havia sido perpetrado por uma nação aliada. No final do século XIX surgiam as primeiras zonas industriais de Lisboa nos bairros de Alcântara, Bom Sucesso e Santo Amaro, surgiam os pátios e quintais, principalmente na Graça, onde moravam os trabalhadores chegados do campo para laborar nas fábricas e também os primeiros bairros operários e os primeiros sindicatos. O Partido Republicano integra classes médias e profissionais (médicos e advogados), proletários, vai ganhando cada vez maior importância e a família real acaba por sofrer um atentado em 1908 e no qual se perdem as vidas do Rei D. Carlos e do príncipe herdeiro, D. Luís Filipe. Na tarde de 1 de Fevereiro, um sábado, quando a família real chegava a Lisboa vinda de Vila Viçosa, Manuel Buíça apontaria a espingarda ao landau onde seguia a família real, atingindo o rei na coluna vertebral e comprometendo para sempre a monarquia portuguesa. Apoiado em Alfredo Costa, que por sua vez alvejara também o rei, avançaria um pouco mais e acabaria por balear o príncipe no rosto. Deste dia até à implantação da república somar-se-iam apenas dois anos, com a revolta a decorrer em Lisboa, a população a formar barricadas e a armar–se, os exércitos a sofrer inúmeras deserções e o País a aderir ao regime republicano. A primeira república é proclamada e com ela medidas liberais como o apoio social aos trabalhadores, a criação do Estado Providência, o direito à greve e o fim dos privilégios da Igreja e da nobreza, entre outros. Este período provar-se-ia bastante conturbado, sucedendo-se as disputas e violências políticas. Lisboa tornar-se-ia palco de atentados e a instabilidade instalar-se-ia. Em 1916 Portugal participa na Primeira Guerra Mundial como aliado, enviando homens e consideráveis recursos, o que intensifica a crise e aproxima Portugal a passos largos para episódios de fome. Sucedem-se novos golpes de estado levados a cabo por conservadores e pró-católicos e em 1918 chega a gripe espanhola, dizimando milhares de pessoas. É deste período que Lisboa recorda a construção da maioria dos edifícios acima das Avenidas Novas, de cores amarela, rosa e azul claro, fachadas de vários andares e coroados com mansardas. Eram na altura erguidos pelos pequenos empresários que chegavam de Tomar, os chamados patos bravos. Chegaria entretanto 1926 e com ele o fim da Primeira República, derrotada pela direita conservadora antidemocrática, com a liderança de Gomes da Costa e de Salazar. Este regime só terminaria em 1974, com a Revolução dos Cravos, que teve como um dos cenários o Convento do Carmo, monumento que ao longo de toda a sua história testemunhou tantas convulsões e tantas alterações na capital portuguesa.

Os cenários da cidade, tomados do alto, poder-se-iam chamar os telhados de Lisboa.

Há os miradouros de panorama extensivo, que abarcam todas as distâncias. E há os miradouros suspensos sobre a cobertura confusa do casario: só se distinguem empenas, mansardas, telhados, campanários pequeninos, a ramagem tímida de um quintal.

E tudo se amalgama na intimidade dos planos. Perdem-se as linhas do trânsito, os portais fidalgos, as belas varandas de renda, as bocas sombrias dos casebres.

Destes cenários desgrenhados a poesia ascende, sem ritmo, num pitoresco desconcertante de acaso.

Põe-se de poleiro o galo alfacinha!

Do alto suspenso do Carmo ou das lombas de S. Cristóvão, de S. Pedro de Alcântara ou do Monte de S. Gens, Lisboa parece um castelo de cartas, numa das quais há sempre uma nesga do Castelo. Lisboa é, assim, uma estampa aberta em xilogravura, traço aqui, traço ali, sem nenhum «talhe de foice». Mas nem bárbara nem atropelada. Nem monótona nem hostil.

Ao pé de Santa Luzia aninha-se a Alfama – com os telhados em pérgula contínua: aqui um fragmento de água-forte, além um pedaço de aguarela. Deste cenário alfamista, cinzento, salpicado de rosa e verde-ervilha, ascende a frontaria branca de Santo Estêvão, como que a abençoar aquela mediania urbanista, delirante de labirintos.

Nada mais estranho e mais deslumbrante do que os planos sobrepostos e indecifráveis de Lisboa. Não há que ver: há que sonhar. Por muito que se saiba de bairros, e de ruas, e de palácios, e de eirados – tudo quanto se sabe por adivinhação. As definições pairam como um mistério ondulante, tostado pelo sol das idades.

À tardinha o ocaso esbrasa numa vidraça: será a minha casa que está a arder?

À noite uma luzinha tremula numa janela: será o meu amor que está a costurar?

De madrugada a alva espreguiça-se e levanta-se num telhado: será o sol que ali dormiu esta noite?

Norberto de Araújo, Telhados de Lisboa

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