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Há mais de cem anos, cerca de 66 famílias judaicas reuniram-se nas dunas localizadas no que viria a tornar-se a cidade de Telavive, a primeira capital hebraica na colónia britânica da Palestina. Recorrendo ao uso de conchas para dividir as parcelas de terra entre si, estas famílias viriam a alterar o curso da História

Os primórdios de Israel levam-nos à era em que aquele território se encontrava povoado com pequenas comunidades agrícolas que se dedicavam à criação de um novo conceito de judeu – forte e independente, capaz de trabalhar a terra e de defender-se. Tratava-se do oposto da figura do intelectual urbano vienense ou do estudante religioso do leste europeu geralmente associado ao conceito de judeu na viragem do século XIX. Cada vez mais os grupos de industriais sonhavam não com os kibutz que tinham como base o ideal comunista, mas com uma cidade judaica liberal que pudesse dar forma à “Velha Nova Terra” descrita pelo pai conceptual de Israel, o escritor Theodor Herzi, que ilustrara o sonho de um estado secular judeu na obra Altneuland. O sonho era o de que essa cidade representasse um novo recomeço, um lugar onde se pudesse forjar uma nova elite urbana. Organizadas sob um colectivo cujo nome seria Ahuzat Bayit (herdade em hebraico), as famílias adquiriram terras em Kerem Jabali, a norte da cidade portuária de Jafa e a sul de duas comunidades judaicas.

Conchas a marcar o início da cidade que proclamaria a independência de um estado

O líder deste colectivo de Ahuzat Bayit, Akiva Aryeh Weiss, enfrentaria então um problema. Tinha à sua frente 66 famílias e uma vasta área de terra arenosa pontuada aqui e ali com um pomar ou uma vinha. A terra já estava a ser preparada e as dunas a ser aplainadas de modo a criar-se uma ligação directa entre Neve Tzedek, o bairro iemenita e o lugar do novo povoado. As várias porções de terra dividiam-se ao longo da estrada principal (Rua Herzl) com quatro ruas perpendiculares que ainda hoje constituem o eixo de Telavive (Ahad Há’am, Rothschild Boulevard, Lillienblum e Yehuda Halevi). Mas como se decidiria quem ficaria com cada uma destas porções? Weiss elaborou então um brilhante plano que acabou por revelar-se um marcante episódio da história do povo judeu e daquela região. Recorreu a conchas para estabelecer uma ligação entre cada família e as diversas porções de terra. Escolheu 66 conchas brancas e outras 66 escuras, associou a um dos grupos os números relativos às porções de terra e ao outro os apelidos de cada família e colocou-os em duas caixas. Depois, um rapaz foi encarregue de retirar uma concha de cada caixa decidindo-se assim o destino de cada família. A 11 de Abril de 1909 o grupo que incluía industriais, professores e poetas apostou a vida na sorte e estabeleceu ali as fundações de uma cidade que 39 anos mais tarde anunciaria o nascimento de Israel. O momento histórico foi registado por Avraham Soskin numa icónica imagem onde membros deste colectivo se encontram junto ao ponto hoje identificado como Rothschild Boulevard. Reza a história que o homem que se avista atrás do grupo, na encosta, é Shlomo Feingold, que se opunha à ideia e terá alegadamente gritado aos outros: “São loucos! Aqui não há água!”

“Um dia, em 1909, estava a caminhar com a câmara numa mão e o tripé no regresso de um passeio pelas dunas de areia do que é hoje o percurso de Telavive para Jafa. No lugar onde em tempos estava o Hersliah Gymnasium vi um grupo de pessoas que se tinham reunido para um sorteio de lotes habitacionais. Embora fosse o único fotógrafo na zona, os organizadores não tinham considerado convidar-me e foi apenas por acaso que este momento histórico ficou imortalizado para as gerações seguintes”, narraria o Soskin mais tarde.

Entre as pessoas que tentavam a sua sorte naquela imagem estava Meir Dizengoff, um homem de negócios sionista que alimentava grandes sonhos tanto para Israel como para a cidade que iria nascer. O seu lote, localizado no Rothschild Boulevard, tornar-se-ia o primeiro centro político urbano e Dizengoff o primeiro presidente da câmara da cidade.

Um passo de titãs

Anos mais tarde, quando o primeiro-ministro britânico Winston Churchill visitou o território que era ainda uma colónia britânica, Dizengoff ordenou que a avenida nascente fosse preenchida com árvores e dezenas delas foram, então, enfiadas no solo árido antes que a visita se desse. Contudo, quando Churchill chegou, os habitantes aglomeraram-se em seu torno subindo às árvores para obterem maior alcance de visão mas aquelas não estavam enraizadas e, por sua vez, começaram a ceder. Ao que se sabe, o sempre sábio primeiro-ministro ter-se-á virado para o embaraçado anfitrião dizendo: “Aquilo que não tem raízes está fadado a murchar”.

Dizengoff liderou o florescimento da cidade, com uma escola a ser construída no início da Rua Herzl (agora o Edifício Sholom Meir) e novas estradas e ruas surgiram permitindo o nascimento de novos bairros, como o bairro dos comerciantes Florentine e o Mercado Levinsky. Após a sua morte, em 1936, a sua casa transformou-se no primeiro museu da cidade, tendo sido dedicada a preservar a história de Telavive. Foi ali que, em 1948, David Ben-Gurion declarou independência e anunciou a formação do estado moderno de Israel. O povo multiplicava-se então cá fora, em Rothschild, bem como junto às telefonias de toda a nação e de todo o mundo para ouvir as notícias. A Casa Dizengoff existe até hoje, erguendo-se aqui um monumento que homenageia as primeiras 66 famílias da cidade e esse histórico dia em que Telavive se fez ouvir pela primeira vez na História.

A integração de Jafa

Situada na costa do Mediterrâneo a cerca de 60 quilómetros de Jerusalém, terá sido assim o nascimento desta que é actualmente a segunda maior cidade de Israel e que concretiza o sonho que simboliza o ressurgimento da Primavera que nasce da terra antiga. Assim baptizada em 1910, a cidade de Telavive poderá ver a sua identidade traduzida como “Colina da Primavera”, também título hebraico da obra de Theodor Herzl (Altneuland). Aviv é a palavra hebraica para Primavera (simbolizando a renovação) e Tel um local arqueológico que descobre camadas civilizacionais uma após a outra. Nos anos 50 incorporou a antiga cidade cananeia de Jafa passando a formar uma única municipalidade – daí o nome hebraico Tel Aviv – Yafo. – onde vai buscar também grande parte das suas raízes. Jafa (em hebraico “bela”) foi tomada pelo general de Tutemés III ainda no século XV a.C., tornando-se capital provincial durante o Império Novo egípcio. Terá sido ocupada pelos reis David e Salomão, foi governada por persas, administrada por ptolomaicos e capturada pelo imperador romano Vespasiano. Mais tarde vieram os Cruzados (1126) que a perderam para Saladino em 1187, para depois voltar a ser recuperada por Ricardo I de Inglaterra em 1197 e no século XVII voltar a desenvolver-se como cidade portuária destacando-se muito durante o século XIX. O estatuto de Telavive enquanto primeiro território urbano da Palestina administrado por judeus contribuiu para atrair imigrantes judeus ao longo das décadas de 20 e 30 do século passado, sendo nesta altura que a cidade emergiu como centro económico, cultural, politico e militar da população judaica na Palestina. Nasceram teatros, muitos escritores proeminentes estabeleceram-se na cidade e o seu núcleo histórico tornou-se um emergente centro de negócios. Em meados da década de 30 a população excedia já a de Jafa, então um núcleo económico árabe e uma das maiores comunidades árabes na Palestina. A Resolução (181) da Partilha da Palestina aprovada em 1947 pelas Nações Unidas previa que Jafa se mantivesse um encave árabe dentro do estado judeu mas em vésperas da declaração israelita como estado independente e das guerras israelo-árabes, as forças militares judaicas tomaram o controlo da cidade, obrigando à fuga da maioria da população árabe (cerca de 65 mil pessoas), seguindo-se a ocupação de imigrantes judeus, que rapidamente se instalaram na cidade largamente deserta e dando-se, então em 1950, a sua incorporação em Telavive.

A Bauhaus e o cosmopolitanismo da cidade

Setenta e três anos mais tarde, Telavive mantém-se cosmopolita. Nela continuamos a encontrar judeus, árabes e estrangeiros. A mudança é sem dúvida óbvia, desafiando todos os anos os limites da tolerância, como narra Leonídio Paulo Ferreira na crónica assinada no Diário de Notícias em Março de 2017 a propósito das paradas gay, que hoje em dia ocupam nada mais nada menos do que uma semana de Junho e opondo-se, naturalmente, à religiosidade própria de Jerusalém sendo até apelidada de “cidade do pecado”. É, sobretudo, conhecida como a Cidade Branca em virtude da elevada concentração de edifícios Bauhaus que ali encontramos. Fundada na Alemanha no início do século XX por Walter Gropius, considerado um dos mais importantes nomes da arquitectura da época, a escola Bauhaus afirmou-se como um marco no design, na arquitectura e na arte moderna, integrando artistas como Klee, Kandinsky e Van der Rohe, entre outros. Influenciada pelo conceito de “obra de arte total” (propagado por Richard Wagner no século anterior), a Bauhaus procurava dar resposta ao conflito existente entre as artes aplicadas e as belas artes, as primeiras até então encaradas como actividades de nível inferior e as últimas de nível superior. Juntamente com colegas arquitectos e artistas de vanguarda, Gropius tentou assim unificar as duas visões fundando a Saatliche Bauhaus, onde eram lecionadas todas as vertentes artísticas, procurando também a superação de estilos históricos na arte pela transformação da vida numa experiência estética, tal como Nietzsche havia proposto. As bases do modernismo seriam lançadas pela Bauhaus e fortemente combatidas pelo nazismo, que as considerava “coisa de comunista”. “Arte degenerada” seria o modo como o regime nazi nomearia toda a obra de arte e todo o movimento cultural que não estivesse de acordo com o conceito de arte e o ideal de beleza clássico e naturalista e que incluía a Bauhaus, o Dadaísmo, o Cubismo, o Expressionismo, o Futurismo, o Fauvismo, o Impressionismo e o Surrealismo, que viriam a ser alvos de perseguição e destruição a par com os seus autores. Em 1936 foi inclusivamente proibida toda e qualquer manifestação de arte moderna, com obras a ser confiscadas a museus para a realização de uma exposição itinerante (com o título Arte Degenerada), vendidas ou destruídas. Restava aos seus autores partir para o estrangeiro e a verdade é que muitos deles eram judeus, rumando então a Telavive e levando consigo a influência artística que iriam implementar no urbanismo da cidade. A Cidade Branca de Telavive remete, pois, à primeira metade do século XX, quando Patrick Geddes desenha um plano para o centro da cidade suportado em quem chega da Alemanha. A Cidade Branca nasce como um conjunto de edifícios residenciais de estilo Bauhaus adaptados ao clima local – desértico e mediterrânico, com casas de cimento, varandas curvas a proporcionar sombra às janelas e todas elas brancas para reflectirem a luz solar e destacando-se sobretudo pela ausência total de decoração.

A Cidade Branca

É aqui que se concentra o maior número de edifícios  – mais de quatro mil – do referido estilo, razão pela qual o bairro da Cidade Branca acabou por ser reconhecido pela UNESCO como Património da Humanidade em 2003. A sua visita é obrigatória. Única no mundo no que se refere ao estilo, a Praça Dizengoff é uma das mais importantes de Telavive, ligando três das ruas mais comerciais: Dizengoff, Reines e Pinsker. O Boulevard Rothschild, coração do centro financeiro, é outro exemplo de arquitectura Bauhaus, misturando-se agora com os arranha-céus das sedes financeiras. Esta avenida será uma das principais de Telavive, uma vez que parte do bairro Neve Tzedek (o primeiro bairro judeu de Telavive, agora cheio de galerias de arte, boutiques, pequenas lojas de moda e cafés chiques, contando inclusivamente com a presença do Nobel da Literatura Shmuel Yosef Agnon como morador) e segue até à Praça Habirna (verdadeiro oásis cultural cercado de importantes edifícios dedicados à arte, como o Teatro Habima, o Palácio da Cultura e o Pavilhão de Arte Contemporânea Helena Rubistein). Guarda uma série de lugares históricos, nomeadamente o Salão da Independência, onde o país terá declarado oficialmente a sua independência em 58. Hoje chamam-lhe “a rua que nunca dorme”, tão disputada é por atrair um público tão diverso como extenso. Aposta do líder sionista Menahem Shenkin, nasceu com o intuito de apoiar os comerciantes e as indústrias caseiras. Foi paraíso hippie, centro de arte alternativo e destacou-se mais tarde pelos cafés e lojas da moda, sendo actualmente muito procurada como destino residencial.

Apesar e contar com dimensões reduzidas, a cidade de Telavive permite muitas viagens em nós mesmos e na História, com um passado tão longo e tantos aspectos interessantes a partir dos quais poderá ser descoberta. Ao viajante recomenda-se a preparação para a surpresa. É que, de facto, a beleza, a História, o testemunho e a actualidade é ali que, todos os dias, se preparam para um futuro que se sonha de paz e não de conflito. Viajar até Telavive vale sobretudo pela riqueza com que de lá se sai. Monetária, avisamos já, não há-de ser mas que se sente depois de tanta informação absorvida num território de apenas 22.145 quilómetros quadrados. A exploração das praias, da agitada vida nocturna, da gastronomia, e sobretudo o convívio com as gentes realmente jovens que ali vivem são outros muito sedutores aspectos a partir dos quais se poderá estabelecer uma nova e bem justificada viagem. Essa, com mais ou menos desculpas, terá mesmo de acontecer…

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