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Tal como Kennedy e depois de assistirmos à revolução política e cultural cujo percurso esta cidade alemã soube traçar, também nós, rendidos à sua personalidade livre, vibrante e intelectualmente rica, gostamos de afirmar Ich bin ein Berliner!

Já se sabe, a frase foi proferida em 1963 pelo então presidente dos EUA John F. Kennedy em Berlim Ocidental num eloquente discurso e era suposta traduzir o conceito de liberdade associado a este lado da capital alemã num cenário em que o Mundo se via ameaçado pela Guerra Fria. “Todos os homens livres, estejam onde estiverem, são cidadãos de Berlim, e portanto, como homem livre, orgulho-me de dizer ‘Eu sou um berlinense’.” Volvidos 60 anos sobre este evento, Ich bin ein Berliner mantém-se uma frase/conceito actual, tendo adquirido uma maior profundidade no que toca ao conceito de liberdade, criatividade e abertura que hoje em dia se vive não apenas no lado ocidental de Berlim, mas em toda a capital alemã.

Se já o Festival das Luzes que todos os anos ali se realiza (em 2023 decorreu no mês de Outubro) iluminando uma série de edifícios da capital alemã e dos quais é exemplo a Ponte Oberbaum e que muitos consideram a mais bela de toda a cidade, representa uma razão muito válida para visitar Berlim, a verdade é que em cada quarteirão, em cada café, museu ou edifício histórico se encontram motivos que convidam a um mergulho nesta que é uma das mais relevantes cidades culturais de toda a Europa e até do Mundo.

Das mil e tantas pontes à queda do muro

Mas comecemos por aqui mesmo, pelas pontes. Berlim conta com elas em maior número do que a própria Veneza. São muito mais de mil e apresentam-se numa vasta variedade de eras e de estilos. A elaborada Oberbaumbrücke é apenas um exemplo destas, mas de facto considerada como uma das mais belas e imponentes da cidade, tendo sido construída em 1896 para ligar os bairros de Friedrichshain e Kreuzberg sobre o Rio Spree. Figurou no filme A Supremacia Bourne, de 2004, tendo simbolizado a divisão entre Berlim Ocidental e Berlim Leste aquando da Guerra Fria, quando os seus dias eram preenchidos por patrulhas de guardas que asseguravam as margens do Spree como zona fronteiriça ali estabelecendo um dos poucos pontos de passagem do Ocidente para o Leste. Foi em seu torno que, mais tarde, a cultura pop se instalaria em ambas as margens. Actualmente são incontáveis os bares e discotecas que ali atraem multidões em festa, nomeadamente a zona mais próxima da estação de metro de Schlesische Straße em Kreuzberg, zona que saiu da Segunda Guerra Mundial completamente arrasada após sofrer mais de 300 ataques aéreos e que é hoje um bairro alternativo bastante popular. Por sua vez, o antigo porto de Osthafen atraiu uma série de empresas da indústria da música e da moda.

Anarquista, descontraída e rebelde, Berlim reinventa-se constantemente e disto será exemplo a famosa Bebelplatz, a única do centro da cidade cujas fachadas permanecem as mesmas desde antes de 1943 e que em 1740 foi mandada erguer por Frederico, o Grande. Terá sido precisamente aqui que a 10 de Maio de 1933 os nacional-socialistas terão queimado mais de vinte mil livros, defendendo que os volumes selecionados não eram “alemães em espírito”. Entre os exemplares encontravam-se obras de Kästner, da família Mann, Hirschfeld, Marx e cerca de outros 400 autores. Também os livros de Heinrich Heine terão ardido, tendo o autor profeticamente defendido neles que onde se queimam livros queimam-se também as pessoas…. Hoje, nesta mesma praça, existe um memorial subterrâneo. A oito metros de profundidade, em pleno centro da praça, foi construída uma biblioteca (Biblioteca Afundada) com capacidade para acolher os vinte mil livros que terão sido queimados. De prateleiras vazias, e visível através de uma placa de vidro, recordam que a História se esconde sob pavimentos e atrás de muros, revelando-se apenas a quem quiser descobrir e souber olhar. Avançamos até à Porta de Brandemburgo, um dos mais famosos marcos alemães, e a uma outra era da História. Terá começado a ser construída em 1788 sob ordens de Frederico Guilherme II, da Prússia, mas o que poucos sabem é que já ali se encontrava uma outra porta erguida uma década após o final da Guerra dos Trinta Anos, a partir de 1658, quando Berlim começou a crescer como fortaleza cercada por elevados muros. Foi também por aqui que Napoleão entrou aquando da ocupação realizada à cidade em Outubro de 1806 e foi também aqui que Hitler desfilou aquando da Segunda Guerra Mundial, passando o edifício a representar um dos símbolos do partido. Após a guerra circularam por ali tanto veículos como pedestres até à chegada da Guerra Fria e o famoso Muro de Berlim (oficialmente Muro de Protecção Antifascista) começar a ser construído. Nesta altura as forças soviéticas assumiram o controlo, tendo os soldados da DDR (Deutsche Demokratische Republik – República Democrática Alemã) apenas autorização para dela se aproximarem. Símbolo de uma nação dividida ao longo de quase 30 anos e perante a queda em Novembro de 1989, o muro torna-se imagem da reunificação do país. Para trás ficava a pobreza extrema do regime comunista daquela metade de Berlim e a enorme tensão que se registava em pontos como, por exemplo, Checkpoint Charlie, actualmente um dos mais importantes e mais visitados lugares da capital alemã. A meio da Friedrichstraße, ali está ele, agora em versão de réplica com os sacos cheios de carvão ao invés da prévia areia, um posto de verificação de madeira com ambas as bandeiras e de um lado a imagem de um soldado soviético, do outro um americano…

Da obra de Guilherme II ao beijo de Brejnev

No centro de Berlim encontramos a tradição, que é marcadamente visível na arquitectura própria do império alemão. A Catedral, que é também a maior igreja da cidade e foi mandada erguer pelo Imperador Guilherme II em 1894, representa uma resposta do Kaiser à Basílica de São Pedro, em Roma. De estilo neo-renascentista e neo-barroco, o seu interior é absolutamente esmagador. A arquitectura imponente das quatro torres e da cúpula de quase cem metros de altura e a cruz dourada, bem visível de longe, tornam-se cartão postal da cidade alemã. Realizando-se ali mais de uma centena de concertos e eventos por ano, a Catedral guarda a cripta Hohenzollern, o local de enterro dinástico mais importante de toda a Alemanha, a par com a cripta dos Capuchinhos de Viena, da Catedral de St. Denis, em Paris, ou do Escorial nas imediações de Madrid.

A cerca de dois quilómetros, o Edifício do Reichstag recorda uma história que se estende desde o seu nascimento em 1894 até à actualidade, servindo agora como morada do parlamento alemão. A cúpula, com cerca de 23 metros de altura e outros 40 de largura, foi projectada em vidro e aço por Sir Norman Foster numa obra de engenharia absolutamente fascinante, sendo acessível através de uma rampa no terraço e abastecendo a sala do plenário com a mais recente tecnologia de exposição e iluminação. É à chegada da chamada “hora azul” que mais se revelam os contrastes entre a arquitectura antiga e a nova numa harmonia perfeita entre passado e presente.

Desde a queda do muro Berlim mudou completamente, tornando-se uma cidade absolutamente diversificada e vibrante mas mantendo, no entanto, os traços de todo um passado que não se apaga. A sua mais emblemática construção será talvez a antena de televisão com 268 metros de altura, a estrutura mais alta de todo o país. Do muro permanece a memória da sua queda, iniciada a 9 de Novembro de 1989 após 28 anos de separação de uma nação em duas. Na manhã do dia seguinte verdadeiras multidões assumiram à fronteira. Cidadãos da República Democrática Alemã foram recebidos com euforia em Berlim Ocidental; nas ruas servia-se cerveja gratuitamente e pessoas que nunca antes se tinham visto cumprimentavam-se animadas. No Bundestag, os deputados entoaram espontaneamente o hino nacional…

Do lado oriental, numa secção de 1316 metros preservada da demolição criou-se aquela que será eventualmente a galeria de arte ao ar livre de maior duração do Mundo, a East Side Gallery, onde permanece o beijo fraternal entre Honecker e Brejnev no graffiti com a legenda “Meu Deus, Ajuda-me a Sobreviver a Este Amor Mortal”.

Berlim como símbolo de renovação e de esperança

Provavelmente devido à dureza do regime terá o espírito livre resultado que agora se vive na cidade e que evidencia uma alma muito pouco convencional. A Oeste, Tiergarten representa um dos maiores parques, acolhendo o zoo e a Coluna de Victória a marcar o triunfo da história prussiana. Avançamos para a zona de Spandau, onde ficava a prisão que recebeu os líderes nazis condenados no Julgamento de Nuremberga e que inspirou a famosa banda britânica surgida no final dos anos 70, Spandau Ballet. Morada própria de arte urbana e casa da largamente famosa Filarmónica de Berlim, esta cidade é sem dúvida uma capital mundial da cultura, centro do pioneiro movimento Bauhaus que acolhe mais de 170 museus. É lugar de exotismo, de extravagância, de uma vida nocturna subversiva e no entanto empolgante, com lojas e armazéns vazios a acolher festas ilegais no pós-queda do muro que vieram depois a tornar-se emblemáticas discotecas e a lançar a semente de movimentos artísticos actuais como o voguing.

Berlim mantém, no entanto, intacta uma característica há mais de um século: continua a atrair artistas e criatividade como se de um íman se tratasse. Lugar onde a Stasi escutava, prendia, ameaçava e chantageava o povo, tendo detido mais de 250 mil alemães por razões políticas, a Berlim irreverente que hoje encontramos é a mesma que através de um labirinto de 2700 blocos de pedra homenageia as cerca de seis milhões de vítimas do holocausto no Memorial aos Judeus Mortos da Europa e morada de referência de um dos mais negros períodos da história. Daqui partiram comboios para Auschwitz, aqui marcharam tropas militares e também aqui a Gestapo se manteve implacável perante os que usavam a estrela de David. Hoje é cidade internacional, povoada por gentes de origens diversas, cenário cosmopolita que não disfarça nem abdica de uma profunda alegria de viver e de uma tolerância à diferença que há menos de cem anos se julgaria absolutamente impossível. Berlim, que ainda antes da queda do muro serviu de cenário para os diálogos entre os anjos Damiel e Cassiel sobre a condição humana em As Asas do Desejo de Wim Wenders, é por isso, sem dúvida, um sinal de esperança e um testemunho do quanto o Homem pode crescer a cultivar não apenas a sua educação, mas também a própria tolerância.

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