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Foi montanhista, exploradora, diplomata e espia. Viajou pelo Médio Oriente, falava todos os dialectos árabes e persas e foi responsável pela definição das actuais fronteiras do Iraque. Fundadora do Museu Nacional do Iraque em Bagdade, foi na sua era tão famosa como Lawrence da Arábia

Nascida em Durham, Inglaterra, em 14 de Julho de 1868, no seio de uma família abastada, Gertrude Margaret Lothian Bell estudou História em Oxford numa das únicas instituições que na altura aceitavam estudantes femininas. A par com os estudos académicos, Bell teve de frequentar disciplinas que ensinavam o modo próprio de abrir e fechar uma porta ou como escrever com uma caligrafia aceitável, tendo habilmente navegado este mundo e graduando-se apenas em dois anos e com distinção em História Moderna. Seria a primeira mulher a alcançar este feito, não se sonhando então as barreiras que viria a derrubar. Intrépida viajante retratada no grande ecrã por Werner Herzog em 2015 e interpretada por Nicole Kidman, começaria por explorar a Europa, depois Bucareste e finalmente Teerão, a que se seguiriam duas voltas ao Mundo (uma em 1897-98 e outra em 1902-03), mas terá sido após Teerão, na Pérsia do nosso passado, que Bell terá começado a aprender a língua local chegando mesmo a publicar uma tradução dos famosos poemas do Divan de Hafez. Foi também ali que terá conhecido o amor, ao ser apresentada a Henry Cadogan, membro do ministério dos negócios estrangeiros britânico que não se encontrava no mesmo patamar financeiro e que terá sido recusado pelo pai de Gertrude, que não se sentia capaz de suportar uma segunda família. Cadogan terá morrido de pneumonia nove meses após Bell regressar a Inglaterra para convencer o pai a autorizar o noivado…

Uma mulher num mundo de homens

Gertrude era uma grande entusiasta de desposto e de montanhismo, outra característica rara nas mulheres de então. Na realidade, a presença feminina neste ambiente era tão incomum que nem existiam roupas apropriadas para o efeito, mas Gertrude não se atrapalhou, dedicando-se à escalada de um modo que ilustraria o quão radial era e mais ainda se considerarmos que tudo isto se passou no início do século XX… Escalava vestida com roupa interior e a verdade é que se destacou, tendo um pico dos Alpes suíços sido baptizado em sua honra após ascender aos 2633 metros, o Gertrudspitze. O seu espírito aventureiro também se manifestou através da paixão por viajar tendo-se embrenhado no deserto e rumado do Irão a Jerusalém, Palmira, Damasco, Balbeque e Beirute. Este período marcaria para sempre a sua vida e também o seu destino, já que se apaixonou perdidamente pelo deserto, decidindo também aprender farsi e árabe e obtendo assim o respeito das tribos locais sempre que demonstrava compreender os seus dialectos, tradições e culturas. Em 1907 era fluente em árabe, persa, francês e alemão e conversava em italiano e turco. As suas viagens pela Península Arábica conduziram-na a encontros perigosos com os povos locais, que compreensivelmente desconfiavam desta mulher britânica que ali surgia a atravessar o deserto e que certamente se destacava ao sentar-se a uma mesa com toalhas adamascadas e talheres de prata para jantar com toda a formalidade em plenas dunas… Numa viagem realizada entre Damasco e Riade em 1913 foi capturada mas nem essa experiência a demoveu regressando rapidamente a Basra e a Bagdade e assumindo uma série de responsabilidades políticas e diplomáticas durante e depois da Primeira Guerra Mundial, não sem antes lhe ser concedido o título de membro da prestigiada Sociedade de Geografia, ainda em 1913.

Acerca dos aspectos mais pessoais da vida privada de Gertrude Bell, sabe-se que, além do amor pelo diplomata Cadogan, manteve uma enorme (e nunca consumada) paixão pelo coronel Doughty-Wylie, um homem casado com quem manteve uma relação até à morte deste, entre 1013 e 1915, sendo inúmeras as cartas trocadas entre ambos.

Tão importante como Lawrence da Arábia ou terá T.E. Lawrence sido tão importante como Gertrude?

Ao começar a explorar o Médio Oriente no início do século, Bell desenvolveu um profundo interesse por arqueologia, visitando e documentando importantes locais arqueológicos na Síria, na Turquia e na Mesopotâmia (actual Iraque) e publicando livros de viagens. O seu conhecimento acerca do Médio Oriente e da Mesopotâmia em particular chamou a atenção dos serviços de inteligência britânicos, que a recrutaram durante a Primeira Guerra Mundial tendo trabalhado lado a lado com T.E. Lawrence (o famoso Lawrence da Arábia e sobre quem escreveria An interesting boy. He’s going to make a traveler) para o Departamento dos Assuntos Árabes, recorrendo aos seus contactos e ao conhecimento geográfico que detinha do Médio Oriente em benefício dos serviços militares britânicos e desempenhando assim um papel fulcral para o sucesso da campanha contra o Império Otomano. No final da guerra, Gertrude terá permanecido na Mesopotâmia envolvendo-se profundamente na administração britânica daquela região. Em 1921 esteve presente na Conferência do Cairo juntamente com T.E. Lawrence, defendendo a escolha de Feisal, filho do Sharif de Meca, como rei do estado iraquiano, já que tal como T.E. Lawrence acreditava na independência árabe. Após a coroação deste, em Agosto do mesmo ano, Gertrude regressou à paixão pela arqueologia dedicando-se à herança cultural do Iraque e obtendo então uma posição como directora honorária, criando nesta altura o Museu Nacional do Iraque, em Bagdade, delineando as primeiras leis sobre antiguidades com o intuito de garantir que os artefactos ali encontrados não saíssem do país e supervisionando ainda escavações de sítios arqueológicos muito significativos como Ur e Kish. A criação do museu iniciou-se em 1923, empresa titânica já que era necessário organizar milhares de objectos que se encontravam armazenados num espaço pouco maior do que uma arrecadação sem que se dispusesse de qualquer sistema de catalogação. Em 1926 Gertrude tinha já adquirido uma nova morada e abrira uma sala ao público – A Babylonian Stone Room.

1926 marcaria também a data da sua morte, não muito depois da inauguração da referida sala do museu em Bagdade e dois dias antes de completar o 58º aniversário. Embora não tenha sido encontrado qualquer sinal de suicídio, a verdade é que na origem da morte parece ter estado uma ingestão elevada de soníferos, havendo a suspeita de que já com uma saúde débil e infeliz com uma vida enquanto administrativa mas a sonhar com aventuras, Bell terá preferido antecipar a mais empolgante de todas…

Um espírito inquieto

Ao longo da vida, Gertrude Bell foi publicando diversas obras, destacando-se Persian Pictures, ou The Desert and the Snow, que narra a expedição realizada em 1905 através do Deserto da Síria até à Ásia Menor. Em The Thousand and One Churches, Bell disserta acerca da arquitectura bizantina na Anatólia. As suas últimas viagens foram publicadas na obra de 1911 From Amurath to Amurath. O seu legado não se esgota, no entanto, nestas obras mas no seu apelo sobre a importância da preservação de artefactos antigos e de sítios arqueológicos do todo o Médio Oriente e particularmente nos esforços que empreendeu ao criar o Museu Nacional em Bagdade. Após a destruição trazida pelo ISIS, algumas das suas fotografias de muitos sítios são os últimos testemunhos do incalculável valor de uma riqueza que se terá perdido, a par com lugares como Alepo e Raqqa, que foram completamente arrasados na Guerra Civil Síria. “Filha do deserto” que aconselhou reis e primeiros-ministros; que acompanhou Winston Churchill e Lloyd George, foi amiga de T.E. Lawrence e de John Philby e íntima de sheiks árabes ao ponto de se tornar conhecida como “a rainha sem coroa do Iraque”, Gertrude Bell foi sobretudo um espírito inquieto e arrojado, pioneiro e visionário, extremamente inteligente e de uma coragem que lhe permitiu chegar até onde poucos ocidentais se atreveram a ir.

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