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Marrocos de fio a pavio, ao longo da linha litorânea do Atlântico. De Tânger a Dakhla, uma teia de cidades, gentes, dunas, praias, fortalezas e memórias de tempos vários, espelho de um grande e diverso reino

Texto e foto: Humberto Lopes

Tanto mar, tanta a terra que a partir de Tânger se estende a às areias e às hamadas do Sara. O mar é um desenho que desde o litoral mediterrânico mancha de azul o horizonte atlântico até à fronteira da Mauritânia. A terra é diversa, escarpada no Atlas, enrugada por singulares grafismos, plana ou plena de vales e gargantas, de oásis, de palmeirais e solidões de aldeias perdidas no enganoso quase nada das infinitudes desérticas. E tanto, tanto café onde no repouso da sombra a vida se espreguiça diante de um bule de chá.

Que se lembre o viajante que este não é um café qualquer. É o Hafa, tem cem anos de idade e a seus pés o Mediterrâneo a fundir-se nas águas do Atlântico. Tem a memória da gente inúmera que por aqui passou, desde o tempo da Tânger-zona-internacional – quando William Burroughs, Paul Bowles e outras figuras cansadas das américas e das europas vinham em busca de liberdade e fantasia. Dele dizia Bowles: C’est sur sa terrasse que je continue à rêver. Le temps a tout transformé sauf cet endroit. Secret et silencieux, le café Hafa est resté comme autrefois, magique. Génération après génération, c’est là que se retrouvent les joueurs d’échec, les poètes, les écrivains, les artistes. Et, installés sur les vieilles nattes de paille, ils s’abandonnent encore aux douces illusions du Kif. O Hafa, com a sua entrada estreita quase dissimulada entre um muro pardo de bairro, recôndito como um souk e ao mesmo tempo aberto à visão de uma ampla paisagem marítima – com o vizinho vulto da terra ibérica do outro lado –, será o melhor lugar para iniciar uma jornada por Marrocos. Onde, se não no Hafa, poderemos evocar a memória histórica de como (quase) todo este reino começou? Sim, de onde veio tudo isto, sobretudo o que tem contornos de obra humana? Em Covadonga começou a ser escrita a saga da chamada Reconquista e o desfecho consumou–se em 1432 quando o Al Andaluz, expulso pelo catolicismo, se mudou para este lado. Era o tempo dos versos que contavam o fim próximo do sofisticado reino de Granada e que Paco Ibanez viria a musicar mais de seis séculos depois. Ay de mi Alhama, ay de mi Alhama, o refrão é o lamento do rei mouro, que deve ter ecoado então pelos pátios e salões do Alhambra.

Ali, no topo do Hafa, o espaço da travessia desenrola esta elucidação que atalha também distracções do viajante: Marrocos é um sublime herdeiro dos tempos luminosos da civilização árabe na península. E é muito mais do que isso.

De Tânger a Rabat

Tânger, uma petit histoire de viagem que conta tanto da cidade – que o actual rei Mohammed VI quis ver renovada e a salvo de duvidosas famas – como o que sabemos dos compêndios que falam das muralhas quinhentistas portuguesas, dos souks, do Café de Paris, onde a intelectualidade marginal ocidental se refugiava no séc. XX. Estávamos numa esplanada, era hora do jantar, ainda havia restos de luz. Viriam tajines e hariras. E para beber?, murmurámos (era Ramadão). O garçon enumerou: tal e tal e tal. Et du vin rouge. Saiu-nos: Ah, vous avez du vin! O homem pareceu ofendido com a nossa pacóvia exclamação. Irónico: Évidemment, Monsieur, qu’est-ce-que vous pensez?

Passamos as grutas de Hércules, no litoral abaixo de Tânger, coisas da mitologia grega. E, depois, vem a branca Arzila, com azuis em rodapé, e os painéis, os muitos graffiti da festa de arte estival. A cidade é uma vasta sala de exposições ao ar livre: uma parte do rosto de Arzila muda todos os anos sobre a base centenária da fortaleza lusitana, a mais bem conservada do país. Numa praceta lá está a torre Hamra, onde o jovem Sebastião pernoitou antes de se lançar à desventura de Alcácer-Quibir. Outra historinha? Sim, um dia comprámos a uma vendedora ambulante os melhores doces de amêndoa do reino. E nem era Ramadão, não, nem era guloseima especial para a festa diária do iftar.

Da estação vemos o cometa do Al Boraq, o TGV marroquino, a voar para Sul. Seguimos noutro ritmo, via Larache, até Rabat. A capital é grande, maior que os pousos anteriores, mas modesta ao lado da gigante Casablanca. Que importa?, tem a casbah des Oudayas e uma animada medina, de ruas mais amplas que o habitual. E urbanismo e arquitectura coloniais, uma luz antiga sobre a Av. Mohammed V. E cafés que convidam à sublime arte de perder tempo. Como aquele, clássico, logo abaixo dos Jardins Andaluzes: o Café Maure, dono de uma arejada vista para o rio.

De Casablanca a Essaouira

Casablanca, que nunca viu Bogart ou Ingrid Bergman a contracenarem, ficou com um extemporâneo Rick’s Café, evocação da fita de Holywood e do jamais pronunciado Play it again, Sam. Talvez a confusão tenha vindo daquela outra cena de outro filme – Johnny Guitar, o filme de Nicholas Ray em que Joan Woodward pede a Sterling Hayden, pela voz de Peggy Lee, que toque uma vez mais a melodia que lhe recorda o amor perdido: Play it again, Johnny Guitar.

A cidade é vasta, de avenidas largas com palmeiras, epicurista, industrial, moderna, mais liberal do que qualquer outra em todo o Magrebe. A medina é velha, deliciosamente decadente, e transpira carisma. Mesmo ao lado, um outro pequeno e cativante labirinto, o do casario art deco do antigo centro. À beira-mar, no final da Moulay Youssef e num extremo da Corniche, a mesquita Hassan II, a lembrar as jóias arquitectónicas do Al Andaluz: é a única mesquita do país aberta a não crentes.

Quase cem quilómetros a Sul, outra fortaleza, a de Mazagão, agora El-Jadida; a cidadela é património da UNESCO. A gente lusitana setecentista mudou-se por ordem real para o Brasil (para Mazagão Velho, no Amapá) e deixou atrás uma belíssima cisterna gótica, a citerne portugaise, onde Orson Welles foi filmar cenas do Othello. Fica na Rua da Carreira (a da Índia), em plena cidadela, onde uma das portas ostenta ainda, como em Safi, o escudo e a esfera armilar portuguesa.

Antes de chegarmos a El-Jadida passamos por Azemmour – a Azamor das crónicas lusitanas: o panorama tem semelhanças com o de Arzila, casario alvo tintado aqui e ali de azul. Da ponte vê-se o pano da muralha e as casas como uma pintura impressionista ao longo do Rio dos Sáveis, o nome lusitano do Morbeia, por onde andam sempre barcaças na sua faina de pesca.

Safi tem cerâmica a ornamentar efusivamente as lojas dos souks – entra-se num pátio e sonha-se com as paredes iluminadas de flores em Córdova. Os padrões decorativos e a qualidade são orgulho nacional que as autoridades se propuseram levar à UNESCO.

As extensas muralhas de Safi são um mundo de património de origem portuguesa, incluindo o famoso Castelo do Mar, emblemática construção militar, agora ameaçado pela fúria do mar e pela derrocada da falésia. Um parêntesis para citar a voz popular marroquina: tomada de anacronismos, preza os portugueses como ilustres antepassados, ironia que gentilmente esquece os avanços do invasor.

Uma vintena de quilómetros a Sul chegamos a Souira Kedima, estância balnear mais ou menos anónima. Uma história que é uma lenda: a fortaleza de Aguz, pequenina, em cima do mar, terá sido construída por magia numa noite pelos intrusos que chegavam de Lisboa. A explicação é que em dois ou três dias, ou menos, foi montada uma estrutura defensiva de madeira apeada das naus, dizem as crónicas.

De Essaouira a Tarfaya

Essaouira. Branca e azul, de novo. Uma cidade de gente do mar. O porto, com os seus inúmeros barcos, as coreografias aéreas das gaivotas, os estaleiros, os pescadores na azáfama do conserto das redes. O recorte da torre de Belém, em imitação bem sugestiva, evoca o fortim que os portugueses construíram na antiga Mogador e que os franceses refizeram. Essaouira é também cada vez mais ponto de encontro de surfistas, tal como a graciosa aldeia piscatória de Taghazout, já a caminho de Agadir. E de músicos: há um grande encontro anual, um festival internacional de música gnawa, expressão musical comum a vários países e culturas da África Ocidental.

De Agadir há-de ser dito que é uma cidade moderníssima, refeita depois do sismo de 1960. Largas avenidas, grandes hotéis de cidade balnear, casinos. Uma cidade do Sul europeu, dir-se-ia. É preciso ir até às contíguas periferias de Inzegane e Ait-Melloul para reconhecer atmosferas mais marroquinas. Em Inzegane, de onde saem ligações de autocarro para toda a parte, a grande praça dos grands taxis, com os seus arcos andaluzes, é uma pérola.

A jornada para sul é longa, mil quilómetros a anunciar o deserto. Paramos em Sidi Ifni, um ex-enclave espanhol que é um prodígio de mestiçagem de arquitectura art deco com elementos mouriscos. Provavelmente só tem par em África na Eritreia, em Asmara. Nos arredores, para Norte, fica a mais bela praia de Marrocos, a praia Legzira, com as suas areias finas e um monumental arco em pedra sobre o areal.

Tarfaya, o pequeno porto quase anónimo onde Saint-Exupéry viveu quase dois anos como chefe de escala nos tempos pioneiros da aviação comercial, não está longe. Um pequeno museu evoca a vida e a obra do piloto-escritor, que em Tarfaya terá recolhido inspiração para alguns episódios de O Principezinho. O surf está na moda, tal como a pesca desportiva, neste remoto litoral que fica a escassas milhas da ilha canarina de Fuerteventura.

Boujdour e Dakhla, o Sara à beira-mar

Esta intimidade entre o deserto e o oceano foi tema do grande naturalista Theodore Monod, que meditava sobre os espaços originais das religiões. Falava ele, talvez, sentado no planalto do Atar, mas a reflexão serve para estas centenas de quilómetros do Sara Ocidental, onde o deserto oferece as suas dunas ao oceano e aos ventos marítimos.

Boujdour é um povoado de pescadores e tem uma importante indústria conserveira. E um barbeiro que na pequena medina gosta de receber clientes de outras terras. Na praia lá estão os rochedos do cabo Bojador que entram mar adentro e que faziam outrora naufragar as caravelas portuguesas – até Gil Eanes descobrir que o melhor era passar ao largo.

A fita de asfalto que corre para sul até à fronteira com a Mauritânia está frequentemente coberta pela a  reia instável que o vento move, se bem que o deserto aqui seja feito mais de pedras e pedrinhas. Dakhka é a última cidade marroquina, rodeada por formações dunares e por um litoral povoado por centenas de autocaravanas de reformados que fogem do Inverno europeu – as temperaturas anuais oscilam aqui entre os 20 e os 28 graus.

A povoação assenta num urbanismo moderno conectado com ruelas estreitas de medina. O ambiente é cosmopolita, a fronteira não está longe. Sem que haja nenhum parti-pris por preguiças (e nenhum mal nisso se veja, até porque a vida de café é um componente cultural incontornável na sociedade marroquina), podemos coroar o périplo por este trecho de Marrocos com um chá de menta no café Al Jazeera. Não temos o Mediterrâneo diante de nós. A porta dá para um pequeno largo ao sol. Sabemos que mais além está o silêncio do deserto. Um silêncio tão grande como o do personagem de um dos melhores textos da literatura marroquina contemporânea, L’enfant de Sable, de Tahar Ben Jelloun, narrativa que pode ser outra porta de entrada para a cultura deste reino do Magrebe.

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