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Cidade ideal como destino de fim-de-semana, Segóvia conta séculos de memória impressionando pelo legado arquitectónico que as diversas eras da História ali deixaram

Capital da província homónima da comunidade autónoma de Castela e Leão, foi romana, visigoda, muçulmana, judaica e cristã, resultando ali um extenso património histórico que em 1985 justificou a sua classificação como Património Mundial pela UNESCO. A apenas 68 quilómetros de Madrid, Segóvia ergue-se a cerca de mil metros de altitude, na vertente setentrional da Serra de Guadarrama, flanqueada pelos rios Eresma e Clamores. As suas raízes são celtiberas, adquiriu importância aquando da presença romana mas foi no final da Idade Média que viveu a sua era de glória, tendo já ganho afirmação como importante centro de comércio de lã. Nesta época foi determinante a crescente presença da população judaica e a criação de uma poderosa indústria têxtil, com a cidade a alcançar o maior crescimento económico durante o século XVI, período após o qual acabou por cair em declínio como, de resto, a maior parte das cidades de Castela em virtude da descoberta da América e da consequente deslocação do centro de gravidade da economia espanhola. O início do século XVIII marcaria uma tentativa de revitalização da indústria têxtil mas sem sucesso e na segunda metade do mesmo século Carlos III faria um novo esforço no sentido de redinamizar o comércio da região mas a falta de competitividade de produção acabou por determinar que a coroa espanhola lhe retirasse o seu apoio. Saqueada no início do século XIX pelas tropas francesas durante a Guerra da Independência, conheceu no final do século XIX e no século XX um período de crescimento demográfico resultante de uma economia relativamente estabilizada. Há quem diga que terá sido fundada por Hércules ou pelo filho de Noé e sabe-se que foi aqui que, em 1474, Isabel, a filha de D. João II, terá sido coroada rainha após desposar o monarca espanhol D. Fernando e tornando-se mais tarde Isabel, a Católica. Foi também em Segóvia que decorreram os primeiros incidentes aquando da Revolta dos Comuneros (Comunidades) de Castela que alguns historiadores classificam como uma das primeiras revoluções modernas, nos quais membros da comunidade local executaram dois funcionários reais.

O Aqueduto

Cidade muito agradável que integra no seu traçado vestígios monumentais de diferentes épocas, vê o passeio pelos seus mais emblemáticos edifícios iniciar-se na Plaza del Azoguejo, lugar destinado a um mercado já desde os tempos da antiguidade e que se desenvolve junto ao famoso Aqueduto, grandiosa obra de engenharia romana datada do século I que conserva 166 arcos, estendendo-se na cidade ao longo de 728 metros e elevando-se nesta praça a 28 metros de altura. Apreciar este espantoso monumento iluminado à noite será absolutamente imprescindível dada a sua imponência. O Aqueduto Romano é, sem dúvida, o mais emblemático símbolo de Segóvia, tendo sido construído sem recurso a argamassa e mantendo juntos mais de vinte mil blocos de granito. Integrou originalmente um complexo sistema de aquedutos e de canais subterrâneos que canalizavam a água desde as montanhas a mais de 15 quilómetros de distância, encontrando-se actualmente em excelentes condições que o importante projecto de restauro realizado nos anos 90 soube garantir.

Da Plaza de Medina del Campo à Senhora das Catedrais

Entrando no centro histórico onde a era medieval parece habitar a contemporaneidade graças ao repertório de mansões nobres, palácios e templos românicos, encontramos a Casa de los Picos, deste modo apelidada dadas as pedras que cobrem a sua fachada. Produto do século XV cuja fachada ostenta 617 bicos de granito, podemos quase caracterizá-lo como versão extrema do estilo esgrafiado (sgraffito), técnica decorativa usada nas paredes dos prédios originada pelos artesãos mudéjares (árabes convertidos ao cristianismo quando da sua expulsão da Península Ibérica) que recorreram a esta prática para decorar construções realizadas a partir de um material inferior. Em Segóvia encontramos, pois, inúmeros padrões de paredes naquela cidade. Avançando-se a partir da Casa de los Picos, avista-se ao fundo a espectacular Plaza de Medina del Campo, onde se destaca a Igreja de San Martín, do século XII, verdadeira pièce de resistance românica com o toque segoviano da torre mudéjar (a majestosa Torre de Lozoya) e a galeria em arco e em cujo interior se esconde uma capela gótica flamenga. Também conhecida como las Sirenas dada a presença de duas esfinges junto à escadaria que de certo modo se assemelham a ninfas do mar, a Plaza de Medina del Campo representa um lugar tão especial que tanto os habitantes locais como os próprios visitantes a utilizam como ponto de encontro. Atravessando a rua poderemos apreciar no Museu de Arte Contemporânea a obra do pintor segoviano Esteban Vicente, que representou um dos primeiros expoentes do expressionismo abstracto. Através da Calle Real, que se divide em três secções (Cervantes, Juan Bravo e Isabel la Católica) chegamos à Plaza Mayor, que representa o verdadeiro coração da cidade. Bastante disputada pelos turistas, a Calle Real aglomera lojas de souvenirs, manifestações artísticas e um sem-número de verdadeiras “distracções”, mas as ruas adjacentes, também pedonais e estreitas, gozam de uma tranquilidade que nos reporta muito fácil e rapidamente à era medieval. Uma vez na Plaza Mayor, encontramos um ecléctico conjunto arquitectónico do qual se destacam a Casa Consistorial (Passos do Concelho), do século XVII, e o Teatro Juan Bravo, de 1918. Também aqui, a Igreja de São Miguel, onde Isabel foi proclamada Rainha de Castela em 1474, remete–se para um segundo plano perante o esplendor da Catedral que se ergue do lado oposto da praça. O seu interior, de paredes brancas e abóbadas de pedra, surpreende pela sobriedade se considerarmos a importância histórica que consigo aporta. A protagonista desta praça é, sem dúvida, a Catedral de Segóvia, também conhecida como “A Senhora das Catedrais”. Com uma fachada e uma robusta torre de 90 metros de altura, acolhe no seu interior um claustro de origem românica, um altar neoclássico assinado pelo arquitecto italiano Sabatini e ainda um Cristo Reclinado de Gregorio Fernández, da escola castelhana de escultura barroca. Encontra-se também ali um dos primeiros livros impressos em Espanha, o Sinoldal de Aguilafuente (1472), bem como tapeçarias flamengas do século XVII. Construída entre os séculos XVI e XVIII num estilo gótico tardio, foi erguida numa época em que na Europa já predominava o estilo renascentista contando por isso com algumas características desta corrente artística. A altura das três naves do templo é absolutamente impressionante; o coro, de madeira em nogueira, pertence ainda ao século XV, conservando as cadeiras da antiga catedral, e faz-se acompanhar de dois grandes órgãos barrocos. O claustro gótico flamejante da catedral formava parte da antiga Catedral de Santa Maria destruída durante as guerras da comunidade de Castela no século XVI, tendo–se feito trasladar pedra por pedra até à nova catedral.

San Esteban, monumentos nacionais e a instalação de museus em casas senhoriais

Continuando o passeio, mesmo junto à Catedral, na rua Desamparados, encontra-se a Casa Museu de Antonio Machado, famoso poeta sevilhano que ali viveu no início do século XX e considerado um dos grandes nomes artísticos desta época, autor de obras como Caminhante, não há Caminho. Em direcção à Plaza de San Esteban pelas estreitas ruas, encontramos então a igreja homónima, construída no século XIII com a sua elevada torre e interior barroco. Avança-se pelo beco dos Capuchinhos rumo ao bairro de Los Caballeros, núcleo do melhor conjunto de palácios da cidade, como a Casa do Marquês de Lozoya, o Palácio de Quintanar ou o Palácio do Conde Cheste, entre outros. Também aqui existe uma grande concentração de igrejas românicas, como a Igreja de San Juan de los Caballeros, onde se encontra instalado o Museo Zuloaga. Os museus que aqui encontramos como, por exemplo, o Museo Rodera Robles, que se localiza na Casa del Hidalgo, monumento nacional desde 1955, encontram-se integrados no que outrora foram casas senhoriais e cujos proprietários, personalidades nobres, também aqui concentravam a sua presença.

A judiaria

Localizada entre o Aqueduto e a Catedral, a Judería de Segóvia, ou judiaria, representa um um bairro onde morou uma importante comunidade hebraica até ao momento de expulsão dos judeus de toda a Espanha, em 1492. Esta judería integra, aliás, a Rede de Judiarias Caminhos de Sefarad, agrupando cidades que contam com património cultural judaico. Em Segóvia, mesmo após a expulsão dos judeus, foi preservada a identidade urbanística de todo o bairro. Instalado naquela que no século XV era a casa do mais importante membro da comunidade judaica na cidade, o banqueiro e (último) rabino-mor Abraham Senior (e ancestral do cantor brasileiro Chico Buarque), o Centro Didáctico de la Judería disponibiliza toda a informação sobre a fascinante história da comunidade judaica em Segóvia. A adjacente Igreja de Corpus Cristi ocupa agora o lugar onde em tempos se erguia a velha sinagoga da cidade.

Pela muralha até ao Alcázar

Um modo original de apreciar Segóvia será o de percorrer o passeio que segue pela muralha. Junto à porta de San Andrés (século XII), no Espacio de la Muralla, existe precisamente um ponto de informação que narra a história defensiva de Segóvia. Singularmente conservada, começou a ser construída no final do século XI após a expulsão dos muçulmanos a mando do rei Afonso VI de Castela, que ordenou a Raimundo de Borgonha que repovoasse e fortificasse a mesma, bem como Ávila e Salamanca. O extremo ocidental do centro medieval, ele próprio rico em vestígios românicos, alcança-se pela rua Daoiz, no bairro Canonjías. Ao fundo, cercado por um profundo fosso, avista-se um dos mais emblemáticos marcos de Segóvia, o magnífico Alcázar, que já no século XII era conhecido como importante bastião. Surpreende tanto pela sua arquitectura quanto pela localização no extremo da cidade como se da proa de um navio se tratasse. Este castelo foi construído sobre outro edifício que data da presença romana e mais tarde uma fortaleza hispano-muçulmana. O próprio termo “alcázar” deriva do árabe al-qasr, que significa fortaleza. Foi residência de muitos reis. O seu papel militar foi-se alterando ao longo do tempo, passando a constituir um castelo representativo da monarquia onde chegou a ser guardado o tesouro real. É do Mirador da Pradera de San Marcos que se obtém a vista mais espectacular do exterior do Alcázar, tornando-se então evidente onde terá Disney buscado inspiração para o castelo da Bela Adormecida. Existe inclusivamente uma trilha que nos conduz até aqui com origem no centro da cidade. No seu interior o destaque vai para a Sala de las Piñas, em cujo tecto se podem apreciar 392 relevos em forma de ananás, e a Sala de Reyes, onde encontramos um friso tridimensional com 52 esculturas dos reis que combateram durante a Reconquista. Do alto dos 152 degraus que conduzem até ao cume da torre obtém-se, então, uma das melhores panorâmicas sobre a Igreja de Vera Cruz (construída no início do século XIII pelos Cavaleiros Templários) e o Mosteiro de Santa María del Parral (onde aos domingos se podem apreciar os cantos gregorianos dos monges jerónimos que ali habitam). Ao redor a serra a lembrar um grande mar e no centro da cidade a Catedral. Mais abaixo adivinha-se o Aqueduto… O conjunto e a inclinação conduzem a imaginação que transforma a cidade num navio, com o Alcázar a representar a proa, a Catedral o mastro central e o Aqueduto a âncora que se lança sobre o mar da serra.

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