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Mantém o exotismo e o caos próprios do passado que lhe servem de tradição e que lhe trazem um charme que é único. Foi palco de civilizações magníficas, de descobertas monumentais e ponto central da Primavera Árabe. Desde que o Ocidente ali chegou nunca mais deixou de seduzir-nos

Magnífico, belo e desafiante, o Cairo não dorme. Se do seu céu cai o canto dos muezzins que chama para as orações do alto de um qualquer minarete, nas ruas ouve-se a sinfonia das buzinas dos automóveis que, imparáveis, circulam pelas avenidas que no século XIX ali anunciaram uma grandeza de outra ordem. Este esplendor é agora bastante mais caótico e, no entanto, romântico. O Cairo é mesmo isso, uma mega-cidade com cerca de 24 milhões de habitantes cuja energia vibra e inebria qualquer um. Assim é a capital egípcia Umm Na Dunya, a chamada “Mãe do Mundo”.

Um lugar único no mundo

Capital do Egipto, representa a maior cidade do mundo árabe e da própria África, tendo sido fundada em 969 por Jawhar, o Siciliano, que se tornara o mais importante líder mundial da história do Califado Fatimida. Localizado nas margens do rio Nilo, ao sul do delta, o Cairo viria a tornar-se capital soberana apenas em 1922, o mesmo ano em que Howard Carter descobriria o famoso túmulo do faraó Tutankamon no Vale dos Reis, a cerca de 630 quilómetros a sul.

Assistiu à chegada de mamelucos, otomanos, de Napoleão e dos britânicos, constituindo actualmente a sede da Liga Árabe. Ali cruzam-se de modo pacífico cristãos coptas e católicos, judeus e cristãos ortodoxos gregos, predominando largamente o islão, com a sharia a servir como principal código de leis. Cidade caótica e brutalmente sobrecarregada, recebe como residente quase 20% da população total do Egipto, fenómeno que se verifica em virtude da maioria do comércio nacional ser ali gerada ou tendo obrigatoriamente de ali se deslocar como ponto de passagem. Assim, os serviços municipais, como as estradas e o fornecimento de electricidade (só para citar alguns) encontram-se altamente sobrecarregados, concorrendo então para a caracterização de uma capital absolutamente única dado o caos e a agitação permanentes, mas que como por magia se entranha na alma do viajante. Os contrastes são constantes nesta cidade quente que se afirma como uma capital de culturas e de gentes, de civilizações e de cosmopolitismo.

O planalto de Gizé

Localmente apelidado como a cidade dos mil minaretes, o Cairo acorda e adormece debruçado sobre Gizé, onde se encontra a antiga necrópole de Mênfis e as pirâmides que acolheram as múmias de Quéops, Quéfren e Miquerinos, a primeira classificada como uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo e que ainda hoje pode ser apreciada e visitada. Aqui, torna-se avassalador o sentimento que desperta ao encontrarmo-nos perante construções com mais de quatro mil anos de história que ali repousam e que na época serviram como sepultura e protecção de faraós em busca da viagem para a vida após a morte.  Um pouco adiante e construída para o faraó Quéfren, a esfinge assiste, impassível, à enchente de turistas ou, como se tem vido a verificar recentemente, à paz da sua ausência. Com corpo de leão e cabeça humana, representa a mais antiga escultura monumental, tendo sido construída em pedra calcária na margem oeste do Nilo. Ao que se terá conseguido apurar, quando o complexo de Gizé foi abandonado, as areias do deserto foram progredindo, cobrindo a esfinge até aos ombros. Tutemósis IV terá conseguido desenterrar as patas dianteiras por volta do século XV a.C. e posteriormente Ramsés II, já no século XIII a.C., mas o monumento seria arrancado ao implacável deserto apenas em 1936 após uma empresa iniciada em 1925.

O Velho Cairo

As pirâmides e a esfinge não são os únicos pontos de visita obrigatória que o Cairo acolhe. O centro histórico foi classificado pela UNESCO como Património da Humanidade. Localizado a sul, o Cairo Velho representa a zona mais antiga da cidade e onde prevalece o caos e toda uma desordenação que conserva o encanto de um tempo que mais parece ter sido detido no próprio tempo, com ruas de pedra estreitas e cheias de vida a merecer um passeio descontraído e a mente aberta. O coração da cidade e a sua alma encontram-se aqui, onde o ritmo é absolutamente frenético, não deixando ninguém indiferente. Será incontornável a visita à Mesquita de Alabastro, assim conhecida em virtude do material que a reveste e inspirada na Mesquita Nova de Istambul, a Cidadela de Saladino, que em tempos protegeu o Cairo dos ataques europeus, a Mesquita de Ibn Tulun, a maior e mais antiga da cidade, a Rua Al-Muizz, onde apenas num quilómetro de comprimento se reúnem palácios e mesquitas e outros tesouros arquitectónicos medievais, e ainda o mercado Khan El Khalili, do século XIV, que representa o mais importante de todo o Egipto e a principal área comercial do Cairo. Cidade que nunca dorme e onde depois das 22 horas o trânsito se mantém caótico, desfila prédios inacabados por uma muito simples razão que excede a imaginação do comum ocidental. É que existem taxas de imposto para a construção e para fugir a estas os construtores preferem deixá-las em tijolo, investindo antes no seu interior já que ali as chuvas são raras…

O Museu do Cairo

Na baixa, junto à Praça Tahrir, encontramos o Museu Egípcio, que reúne uma das mais importantes colecções de arte antiga. Será por enquanto aqui que poderá visitar o tesouro de Tutankamon e de outros importantes faraós, juntamente com múmias, peças de joalharia e todo um passado que parece perscrutar o visitante que por ali circula. Tal como o próprio país, o Museu Egípcio encontra-se em constante “movimento”, pulsando de vida por ser tão visitado e também tão denso, já que num espaço de 15 mil metros quadrados alberga mais de cem mil objectos, agora em constante transição em virtude da abertura do Grand Egyptian Museum, e em cujas instalações encontrarão uma nova morada. Localizada a cerca de dois quilómetros das pirâmides, espera-se que esta colossal obra de arquitectura inaugure em Novembro de 2022 mas o Museu Egípcio permanecerá como ponto de referência não sendo ainda claro que obras irão manter-se neste espaço. A história do edifício é curiosa, tendo-se tornado necessário quando Mohammed Ali proibiu a saída de antiguidades do país em 1835. Poder-se-á dizer que a crescente colecção proveniente de 35 locais de escavação do arquitecto francês Mariette andou de casa em casa no Cairo até que, em 1902, encontrou morada supostamente definitiva no museu. Parece que a segurança das obras terá sido bastante débil até 1996, consistindo apenas no trancar de portas ao anoitecer, e só depois de um ladrão ali se fornecer a gosto se passou então à aposta em alarmes, detectores de movimento e iluminação apropriada das obras. Aquando da Revolução do Nilo, em 2011, que integrou a Primavera Árabe, e em que mais de um milhão de pessoas se reuniu na Praça Tahrir para exigir a renúncia do regime de Mubarak, o museu foi assaltado desaparecendo algumas peças. Para evitar o desaparecimento de outras tantas, alguns activistas juntaram-se formando uma cadeia humana em torno do museu para proteger toda uma herança nacional.

Uma Primavera Árabe seguida por um decepcionante Inverno…

Pela primeira vez egípcios de todas as classes sociais e com diferentes condições socioeconómicas juntavam-se em protestos que ficaram na História. A ideia de o islão dar as mãos à democracia abalou o mundo, surpreendendo tudo e todos. Acreditava-se, então, que valores como a liberdade e a igualdade de oportunidades poderiam ser conceitos menos abstratos e mais reais. Passados 11 anos, da Primavera Árabe pouco restou. De acordo com as narrativas de jornalistas e com a análise do cenário político, a breve experiência democrática deu lugar a uma brutal repressão policial, entretanto com Abdel al Sisi a liderar um governo cujo autoritarismo se assemelha ao de Mubarak. O perfil do próprio Sisi revela-se na megalómana construção de uma nova cidade a ser erguida a 37 quilómetros do Cairo e onde, com um orçamento de 58 mil milhões de dólares, nascerá uma Nova Capital Administrativa, onde todos os ministérios perfilarão lado a lado ao longo de uma extensa avenida em cujo início se situará o Parlamento e, no extremo oposto, o Banco Central. A zona norte ficará reservada à residência presidencial, com os seus palácios e jardins. Esta restruturação urbana isolará a maioria dos cidadãos, representando um centro reservado às elites, à concentração de riqueza e fortalecendo o afastamento do povo do centro do poder, havendo mesmo quem afirme que o colossal empreendimento representa também uma estratégia militar focada no objectivo de impedir uma segunda Primavera Árabe.

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