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Porque não há um Planeta B

Connosco ou sem nós, a Natureza regressará.” As palavras são de Sir David Attenborough, o naturalista que apesar de contar 95 anos de idade se mantém activo na defesa da preservação da Natureza. O planeta Terra assistiu já a cinco extinções em massa, regenerando-se novamente ao longo de milhões de anos. Queremos mesmo ficar na memória da Terra como a espécie que despoletou a sexta?

Texto: Carla Santos Vieira  Foto  Gavin Thurston

Mergulhadores descobrem recife de coral coberto de máscaras descartáveis”, “Tempestade de areia envolve Pequim em espesso manto de poluição”, “Aquecimento global deixa furacões sem ‘freio’”. Os dois primeiros títulos foram apresentados ainda no mês de Março pela TSF e o último resulta de um estudo publicado na Revista Nature, tendo sido divulgado pelo Observatório do Clima. A informação sobre a degradação das condições naturais do nosso planeta é cada vez mais extensa e aprofundada, estando disponível a quem deseje consultá-la. Cada dia se fala mais sobre a urgência de travar práticas danosas e sobre a importância de um esforço internacional para deter de imediato as agressões humanas ao mundo natural no sentido de salvar o planeta que, afinal, constitui a única morada de todos nós.

Se assim é, e se todos estamos conscientes de que esta mudança é urgente e inadiável, porque não estamos ainda profundamente envolvidos e comprometidos com a mesma? De acordo com o Relatório Planeta Vivo da World Wide Fund for Nature de 2020, é evidente a queda sistemática de biodiversidade desde os anos 70, estimando-se a perda de 68% das dimensões das populações animais neste período de tempo. De acordo com Marco Lambertini, director-geral desta organização não-governamental, “A destruição humana da Natureza está a ter um impacto catastrófico não apenas sob as populações selvagens mas também sob a saúde humana e sob todos os aspectos das nossas vidas. Necessitamos de reequilibrar a nossa relação com o planeta para preservarmos a diversidade da vida na Terra e de criar uma sociedade justa, saudável e próspera para garantirmos a nossa própria sobrevivência. A Natureza encontra-se em declínio em níveis sem precedentes em milhões de anos. O modo como produzimos e consumimos alimentos e energia e o gritante desrespeito pelo ambiente, juntamente com o nosso modelo económico, levou o mundo natural ao seu limite.”

O testemunho de uma vida por David Attenborough

Sir David Attenborough, famoso naturalista cujos testemunhos nos habituámos a acompanhar religiosamente através dos episódios da fabulosa série A Vida na Terra, e cuja carreira televisiva vai já na sétima década, regressou no ano passado aos nossos ecrãs com o documentário homónimo do livro do mesmo ano Uma Vida no Nosso Planeta, realizando um apelo a toda a humanidade e sobretudo aos decisores políticos no sentido de acordarmos para uma realidade que não podemos continuar a ignorar. Com início na cidade ucraniana de Pripyat que em 1986 foi evacuada após a explosão da Central Nuclear de Chernobyl, este documentário produzido pela Silverback Films Ltd em colaboração com a WWF para a Netflix devolve-nos Attenborough que, com uma postura de infinita humildade e honestidade, revela uma narrativa em primeira mão acerca do impacto da humanidade sobre a Natureza, abordando necessariamente aquilo que apelida como “a grande tragédia do nosso tempo, o declínio em espiral da biodiversidade do nosso planeta”, referindo claramente que “o modo como nós, seres humanos, vivemos hoje na Terra está a colocar a biodiversidade em declínio”. Contextualizando a nossa evolução e detalhando as condições que tornaram possível que o ser humano nascesse e sofresse esse mesmo crescimento, Attenborough aborda a vulnerabilidade dessas mesmas condições. O Holoceno foi um dos períodos mais estáveis da história do planeta. Durante cerca de dez mil anos a temperatura média global manteve-se estável não variando mais do que um grau celsius. Foram estas as condições base para que a vida surgisse como actualmente ainda a conhecemos, proporcionando a estabilidade e prosperidade do planeta e das espécies e são estas mesmas condições que hoje se encontram seriamente ameaçadas e comprometidas. O aquecimento global por nós provocado anuncia o final de uma época dourada, do “Jardim do Éden”, como lhe chama Attenborough.

O panorama actual e o futuro próximo

Desde os anos 50, a população de animais selvagens foi reduzida para cerca de metade, 70% das aves existentes é agora preenchida por animais domésticos, na grande maioria por galinhas, e o ser humano representa um terço dos mamíferos, criando cerca de 60% dos animais para alimentação humana e ocupando assim uma enorme fatia de território para que estes se reproduzam. A terra fértil é largamente utilizada para cultivo intensivo, abatendo-se cerca de 15 mil milhões de árvores por ano. Nos últimos 40 anos, o Ártico perdeu cerca de 40% do seu gelo e em virtude da pesca as populações de peixes sofreram um desaparecimento de 30% dos seus exemplares.

Se mantivermos este ritmo de desrespeito e inconsciência, prevê-se que em 2030 a Amazónia deixe de produzir suficiente humidade e que se transforme numa savana, o que arrasará a sua biodiversidade e afectará o ciclo da água. No Verão o Ártico não terá gelo, o responsável pela reflexão da energia, acumulando-se esta nas águas e aquecendo ainda mais o planeta. Por volta de 2040 os solos descongelarão permitindo que as reservas de metano e também de carbono se libertem para a atmosfera. Na década seguinte o nível de acidez das águas dos oceanos subirá dramaticamente, os corais morrerão e os peixes serão drasticamente reduzidos. Em 2080 a crise na produção mundial de alimentos estará instalada, com solos inférteis dada a produção excessiva. Os insectos polinizadores terão sido eliminados e as condições climatéricas serão cada vez mais instáveis. O próximo século assistirá a uma subida de cerca de quatro graus celsius, tornando inabitáveis grandes extensões do planeta e causando assim grandes êxodos, com milhões de pessoas desalojadas. Se continuarmos a ignorar os alertas dos especialistas e não mudarmos radicalmente a nossa atitude no planeta, em menos de cem anos poderemos assistir à nossa própria extinção.  

A urgência de uma nova ordem mundial

A Terra já foi palco de cinco extinções em massa. A sexta está já em curso. Como afirma Attenborough “durante a próxima geração a segurança e a estabilidade do Holoceno vão perder-se”, tornando-se claro que estamos à beira de um desastre global provocado por nós mesmos. “A não ser que nos paremos a nós mesmos, iremos continuar a consumir os recursos físicos da Terra até os esgotarmos a todos.” Como tão bem expõe o naturalista, “os perigos que hoje ameaçam a Terra são globais e só podem ser combatidos se os países esquecerem as suas diferenças e se unirem para agir globalmente”. Urge recuperar o mundo selvagem, mas estaremos a tempo? A grande maioria dos especialistas afirma ser ainda possível. Para este efeito há que adoptar um novo estilo de vida que seja sustentável e que nos coloque em equilíbrio com a Natureza. As alterações climáticas terão de ser imediatamente invertidas, cuidando das emissões de gases com efeito de estufa. A utilização exagerada de fertilizantes terá de ser detida e a conversão de espaços selvagens em terras de cultivo e plantações terá de ser invertida. Teremos de estar atentos à camada de ozono, à utilização de água doce, à poluição química do ar e à acidificação dos oceanos. Se dermos preferência ao restabelecimento do mundo natural a perda de biodiversidade abrandará e não tardará a inverter-se. A mudança para a energia verde, a recuperação da Natureza dos mares, a ocupação de menos espaço dando primazia aos habitats selvagens, a recuperação da Natureza nas terras e o planeamento para o pico demográfico garantindo-se o equilíbrio da vida de todos os seres humanos com iguais condições saúde, educação, rendimento, habitação e dignidade serão pontos-chave que poderão marcar a diferença entre a nossa sobrevivência e o nosso declínio.

“Temos as soluções para repararmos muitos dos danos que causámos ao ambiente”

Gavin Thurston, realizador e cameraman é um dos mais inspiradores viajantes do nosso tempo. Galardoado com uma série de Emmys e BAFTAs ao longo de uma carreira com mais de 30 anos, Thurston foi o primeiro a realizar filmagens do quase extinto tigre da Sumatra tendo nas suas viagens privado intimamente com alguns dos mais exuberantes animais do planeta. Junto de David Attenborough fotografou e filmou os gorilas de montanha no norte da República Democrática do Congo e, entre outros animais, no Alasca captou imagens de lobos e de ursos pardos a apenas quatro metros de distância. Como director de fotografia, acompanhou David Attenborough na realização do documentário acima mencionado Uma Vida no Nosso Planeta. Ambientalista convicto, falou a propósito deste aspecto com a Travel & Safaris a partir de um navio no meio do Atlântico, onde se encontrava a rodar um novo documentário para a BBC e a National Geographic. De uma simplicidade e humildade desarmantes para um homem com um percurso tão vasto e rico, Gavin, que já esteve presente em mais oitenta países, afirma sentir “uma certa vergonha” quando pensa na pegada de carbono que as suas viagens traduzirão, desvalorizando a enorme importância do seu trabalho para a documentação de toda a beleza e diversidade que estamos em risco de perder. É o primeiro a adiantar que foram os filhos que o alertaram para o custo que o consumo de carne aporta ao planeta, contribuindo deste modo para que passasse a evitar este elemento na alimentação. Autor do livro Journeys in the Wild: The Secret Life of a Cameraman, Thurston aponta uma viagem ao Bornéu como momento marcante na sua carreira, quando se apercebeu que “milhões de hectares de floresta tropical foram arruinados provocando-se um desastre ambiental que vinte anos mais tarde ainda é evidente”. Decidiu, então, assumir uma atitude mais participativa e aceitou tornar-se presidente da Borneo Nature Foundation, uma organização de investigação e conservação sem fins lucrativos que trabalha na protecção de algumas das mais importantes áreas de floresta tropical e na salvaguarda da vida selvagem, do ambiente e da cultura indígena daquele país. “Temos de concordar em fazer alterações nas nossas vidas. Temos de eliminar o recurso aos combustíveis fósseis, temos de comer menos carne e que evitar as emissões de dióxido de carbono. O mar está cheio de plástico e o planeta continua a aquecer.” Thurston é, no entanto, positivo quanto ao futuro. “Como diz o David, pensarmos que podemos crescer infinitamente é coisa de loucos. Algo tem de mudar, é matemática simples! Tenho esperança na COP26 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas), que decorrerá em Novembro, em Glasgow. Penso que nós, cidadãos, temos um papel importante a desempenhar ao transmitirmos claramente a mensagem de que desejamos e exigimos mudanças a este nível. Os políticos inteligentes perceberão a mensagem e pensarão nos votos que querem obter. Também acredito que é essencial que se aposte na educação das mulheres nos países em vias de desenvolvimento, que em última análise ajudará a que passem a ter menos filhos contribuindo deste modo para um decréscimo da população. Temos de estar atentos, as mudanças climáticas que estão a ocorrer podem não ser óbvias para já mas estão a acontecer e em breve serão imparáveis se não mudarmos agora. Diria que temos as soluções para repararmos muitos dos danos que causámos ao ambiente. Temos energia solar, energia eólica, sabemos que devemos comer menos carne, que não devemos criar desperdício e que não devemos encher os oceanos de plástico. Basta concordarmos e decidirmos esta mudança.”

“O mais importante que podemos fazer neste momento é trazer estas questões para o debate público”

Também Keith Scholey, produtor de documentários sobre vida selvagem para televisão e cinema com uma longa carreira na BBC, co-fundador, co-CEO e realizador da Silverback Films Ltd, acompanhou David Attenborough numa multiplicidade de documentários e mais recentemente como realizador e produtor executivo de Uma Vida no Nosso Planeta. A partir de Londres, deu o seu testemunho à Travel & Safaris confirmando ter a mesma opinião que o próprio Sir David e que Gavin Thurston. “Acredito que todos temos de mudar o modo como encaramos o mundo.” O realizador que já viajou por todos os cantos do planeta testemunhando o desenrolar da vida natural considera as presentes mudanças climáticas e o ritmo de destruição da Natureza “absolutamente aterradores. Penso que o mais importante que podemos fazer neste momento é trazer estas questões para o debate público, aumentando a compreensão das pessoas sobre o que está de facto a passar-se. Penso que ainda há muita falta de receio sobre o que está a acontecer porque as pessoas ainda não compreenderam, ainda não leram nem viram o suficiente para estarem devidamente informadas e tomarem atitudes mais definitivas. Temos que fazê-las saber que as condições em que podem sobreviver irão alterar-se dramaticamente se perdermos a estabilidade que o Holoceno nos proporcionou. As temperaturas aumentarão muito. Sabemos que o ser humano não foi feito para viver nessas condições, as nossas cidades não funcionarão. Basta por exemplo pensar no que aconteceu em Inglaterra há dois anos, quando as temperaturas subiram aos 38 graus centígrados para percebermos que não estamos preparados para grandes mudanças climáticas. Os comboios foram obrigados a circular a menores velocidades dado o risco de sobreaquecimento dos carris e houve problemas com os cabos eléctricos. Temos de perceber que uma vez que passemos o limite que já está bem delineado não poderemos deter uma catástrofe.” No entanto, Scholey é optimista relativamente ao futuro. “Penso que já estão a acontecer alterações marcantes neste sentido. A China já investe muito em energias verdes e a América, a União Europeia e a Inglaterra também estão empenhadas em proteger o ambiente. Tenho esperança que o COP26 também desempenhe um papel importante para as alterações de que necessitamos. Penso que se taxarmos as emissões de carbono podemos alcançar bons resultados. Imagine que taxamos cada tonelada de carbono e direccionarmos essa taxa para algo que o absorva. As florestas passarão de imediato a valer biliões.” Existem pequenas alterações que poderão implementar uma mudança da balança comercial, dependendo daquilo a que atribuímos valor. Se investirmos em florestas tropicais e nos oceanos, por exemplo, a Natureza tornar-se-á o maior bem económico. Os impostos e os subsídios poderão ser utilizados de um modo muito positivo de forma a protegermos o planeta.

É crucial que alteremos radicalmente o modo como produzimos os grandes agressores climáticos”

Também Bill Gates, co-fundador da Microsoft, surpreende agora ao publicar um livro que se debruça sobre os problemas climáticos. Em Como Evitar Um Desastre Climático, Gates enuncia uma série de acções que poderão reverter o efeito de décadas de práticas catastróficas. Na sua perspectiva, precisamos de remover 51 mil milhões de toneladas de emissões de gases com efeito de estufa da atmosfera por ano. Ao falharmos nesta empresa corremos o risco de correr apressadamente para uma catástrofe global. Na sua opinião, as emissões de carbono não chegarão a zero se apenas apanharmos menos aviões ou dermos preferência aos transportes públicos em vez de conduzirmos o nosso próprio automóvel. A aposta estará sobretudo na criação de um novo modo de produzir electricidade, alimentos, de mantermos os nossos edifícios frescos ou quentes e de transportarmos pessoas e bens em torno do mundo de um modo climaticamente sustentável. É crucial que alteremos radicalmente o modo como produzimos os grandes agressores climáticos: aço, cimento e carne, já que os dois primeiros representam 10% das emissões globais e a carne 4%. Mas não haverá uma resposta mágica para resolver todos estes problemas. Para Gates, a coisa mais importante que as pessoas podem fazer é apostar na própria educação e na avaliação do impacto das diversas soluções. Como cidadãos, “podemos sempre usar a nossa voz e o nosso voto para produzir mudança”, o que poderá passar por atitudes tão simples como telefonar, escrever cartas e participar em assembleias municipais, não perdendo de vista o que acontece a nível local e nacional e, em caso disso, participar activamente na vida política da própria nação. Como consumidores, podemos aderir a campanhas de energia renovável, apostar na redução de emissões produzidas em casa através de gestos tão simples como isolar as janelas e usar apenas lâmpadas LED, comprar um veículo eléctrico ou experimentar comer um hamburger vegetariano. Como trabalhadores ou empregadores, todos podemos estabelecer uma taxa interna de carbono dando prioridade à inovação de soluções baixas em carbono e adoptando novas tecnologias. O nosso envolvimento no processo de criação de políticas colaborando em projectos de investigação financiados com dinheiros públicos e ajudando os investigadores no seu trajecto são medidas que não implicam um sobre-esforço e que marcarão toda a diferença. “A esperança é que, perante a escala e a urgência do Grande Declínio do nosso planeta, os políticos e os líderes empresariais deixem de subsidiar indústrias prejudiciais e se voltem rapidamente para a sustentabilidade como a opção popular e sensata para que o crescimento continue, pelo menos durante algum tempo”, escreve Attenborough, acrescentando que “temos de instigar os nossos políticos, a nível local, nacional e internacional, a chegar a um acordo e por vezes a subordinar o nosso interesse nacional em prol de um benefício maior e mais amplo. O futuro da Humanidade depende do sucesso dessas conversações.”

“Está na hora de o mundo chegar a um Novo Acordo para a Natureza e as Pessoas”

Para Marco Lambertini, director-geral da WWF, o caminho é claro. “Um melhor futuro começa com as decisões que os governos, as empresas e as pessoas tomam hoje. Os líderes mundiais deverão tomar medidas urgentes relativamente à protecção e à recuperação da Natureza como fundamento de uma sociedade saudável e de uma economia próspera. Está na hora de o mundo chegar a um Novo Acordo para a Natureza e as Pessoas comprometendo-se a deter e a reverter a perda de Natureza até 2030 e a construir uma sociedade neutra em carbono. Esta é a nossa melhor salvaguarda da saúde humana e da sustentabilidade da vida a longo prazo.” No limite, não será apenas do planeta que estaremos a cuidar. A questão vai muito mais longe no que respeita à nossa pequena dimensão humana. Como Sir David muito bem adianta, falamos acerca de salvar o planeta, mas “a verdade é que temos de fazer tudo isto para nos salvarmos a nós mesmos. Connosco ou sem nós, a Natureza regressará”, como já fez passadas as cinco extinções em massa a que a Terra assistiu ao longo dos seus 4,54 mil milhões de anos.

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