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Ao empreender uma expedição entre o Cairo e Timbuktu descobriu Petra e o Templo de Abu Simbel. Nascido europeu, viria a viver como muçulmano e foi sepultado sob o nome que nesta cultura adoptou

Estava particularmente desejoso de visitar Wady Mousa de cujas antiguidades ouvira os nativos falarem com grande admiração… Contratei um guia em Eldjy para me levar até ao Túmulo de Aarão… Estava sem qualquer protecção no meio de um deserto onde nunca antes um viajante havia sido visto… Quem no futuro aqui se dirigir poderá visitar este lugar sob protecção de uma força armada; os habitantes acostumar-se-ão às explorações de estranhos e as antiguidades de Wady Mousa serão classificadas como equivalentes aos mais curiosos achados de arte antiga…

A escavação de um mausoléu tornou-se visível, a sua situação e beleza foram projectadas de modo a causar uma impressão extraordinária sob o viajante, depois de durante perto de meia hora ter atravessado a passagem tão sombria e quase subterrânea que descrevi. Os nativos chamam a este monumento Kaszr Faraoun, ou o castelo do faraó, e afirmam ter-se tratado da residência de um príncipe, mas na verdade consiste no túmulo de um príncipe e deve ter sido grande a opulência de uma cidade que pudesse dedicar semelhantes monumentos à memória dos seus governantes…

Ao comparar os testemunhos dos autores citados em Palestina, de Reland, parece muito provável que as ruínas em Way Mousa sejam as da antiga Petra e é notável que Eusébio afirme que o túmulo de Aarão terá sido avistado perto de Petra. Pelo menos disto estou convencido, já que entre toda a informação que pesquisei concluí que não há outra ruína de importância significativa entre as extremidades do Mar Morto e do Mar Vermelho que possa representar aquela cidade. Se descobri ou não o que resta da capital da Arabia Petraea, deixo a decisão aos académicos gregos.

Johann Burckhardt, Travels in Syria and the Holy Land, p.418-431

Seria assim que o primeiro europeu a alcançar a cidade de Petra descreveria o cenário que se abrira perante os seus olhos em 1812. Johann Ludwig Burckhardt nasceu em Lausanne, na Suíça, em 24 de Novembro de 1784 numa abastada família de mercadores de seda. Depois de estudar nas universidades de Leipzig e Gottingen viajou para Inglaterra com o objectivo de empregar-se no serviço público mas acabou trabalhar para a Associação Africana envolvendo-se nos esforços para solucionar alguns problemas do curso do Rio Niger. Para este efeito seria necessário realizar uma expedição terrestre do Cairo a Timbuktu. A empresa era gigantesca e, sendo um homem inteligente, Burckhardt tratou de preparar-se do melhor modo para empreendê-la começando por aprender árabe, ciências e medicina na Universidade de Cambridge e adoptando indumentária árabe. Em 1809 partiu, então, para Alepo, na Síria, para aperfeiçoar a língua e os costumes que aprendera, passando por Malta, onde soube que Seetzen, que partira do Cairo em busca da cidade perdida de Petra, havia sido morto. Chegado ao seu destino, adoptou uma identidade falsa como mercador Ibrahim Ibn Abdallah de modo a esconder a sua natureza europeia e aproveitando a sua estada para aprender dialectos locais e explorar sítios arqueológicos, descobrindo os primeiros hieróglifos hititas ou luvitas. Só passados dois anos a viver como muçulmano na Síria é que Burckhardt se sentiu suficientemente confiante para viajar em segurança sem que a sua identidade fosse questionada, não sem antes testar o seu disfarce em três viagens empreendidas até ao Líbano, à Palestina e à Transjordânia viajando como árabe indigente e dormindo no chão ou comendo com os tratadores de camelos.

Um achado que marcaria o seu nome na História

No início de 1812, Johann partia, então, rumo ao sul passando por Damasco, Ajloun e Amã. Obviamente que esta sua epopeia como viajante não decorreu sem percalços ou momentos ainda mais complicados. Já na Síria fora várias vezes roubado pelos mesmos a quem pagara para assegurarem a sua protecção e em Karak confiou a sua segurança ao governador Sheik Youssef, que fingindo preocupar-se com o seu destino o “aliviou” dos bens mais valiosos e o entregou a um guia sem escrúpulos que logo a seguir o espoliou daquilo que ainda lhe restava para depois o abandar no deserto. Burckhardt era, contudo, intrépido e conseguindo chegar a um acampamento beduíno contratou de imediato um novo guia que o conduzisse para sul. Foi precisamente no mais perigoso percurso para Aqaba, com destino ao Cairo, que Burckahrdt ouviu falar de umas antigas ruinas localizadas num vale estreito perto da bíblica sepultura de Aarão, o irmão de Moisés, na antiga região da província romana de Arabia Petraea, o que o fez associar de imediato esta informação às ruinas de que lhe haviam falado em Malta. Decidido a investigar, mentiu ao guia dizendo-lhe que desejava sacrificar uma cabra em honra de Aarão, na sua sepultura, sendo então conduzido pelo apertado vale onde a 22 de Agosto de 1812 passou a ser o primeiro europeu da era moderna a entrar na antiga cidade nabateia de Petra. Não podendo demorar-se ali durante muito tempo pois poderia ser desmascarado e tomado como um qualquer infiel em busca de tesouros, prosseguiu viagem através dos desertos da Transjordânia e da Península do Sinai, chegando ao Cairo a 4 de Setembro de 1812.

No horizonte, um destino nunca concretizado

Passou ali quatro meses, aguardando por uma caravana para atravessar o Sahara. Decidiu, então, subir o Nilo ao Alto Egipto e à Núbia, justificando o percurso à Associação Africana com o argumento de que desde modo recolheria mais informação acerca das culturas locais, o que o ajudaria a planear a viagem à África ocidental. Janeiro de 1813 marcaria a data da sua partida do Cairo, acompanhando o traçado do rio por terra. Planeava chegar ao Sudão mas foi bloqueado por povos hostis a menos de 160 quilómetros, perto da terceira catarata do Nilo, indo acabar por deparar-se com o Grande Templo de Ramsés II em Abu Simbel em Março de 1813, cuja entrada conseguiu escavar após considerável esforço. Seria Giovanni Belzoni que, após informado por Burckhardt, ali se dirigiria em 1817 para realizar a grande escavação que revelaria ao mundo um dos maiores colossos de sempre. O suíço continuaria em direcção a Esmé, viajando depois até Shendi, perto das Pirâmides de Meroé e dali até ao Mar Vermelho, onde decidiria fazer uma peregrinação até Meca com o intuito de fortalecer a sua credibilidade enquanto muçulmano quando se dirigisse a Timbuktu. A sua entrada em Jeddah, na actual Arábia Saudita, a 18 de Julho de 1814, ficou marcada como o primeiro momento em que Burckhardt adoeceu com disenteria, sendo no entanto autorizado a viajar para Meca, onde passou vários meses entregue a rituais associados à Haje e mais tarde viajou até Medina, onde novamente caiu doente com disenteria e se viu preso a uma recuperação que demoraria três meses. Uma vez abandonando a Arábia, chegou à Península do Sinal em adiantado estado de exaustão, dirigindo-se de seguida para o Cairo, que alcançaria a 24 de Junho de 1815. Os dois anos seguintes passou-os as aguardar por uma caravana que o transportasse através do Sahara até Timbuktu e o Rio Niger. Este período de tempo passou-o no Cairo, vivendo modestamente, e aproveitando para viajar até Alexandria e ao Monte Sinai. Seria o Cairo que a 15 de Outubro de 1817 reclamaria a sua vida em virtude da mesma doença que o alcançara aquando das suas viagens. Sepultado como muçulmano, na sua lápide figura o nome que assumiu aquando das viagens na Arábia. Foi graças ao envio periódico dos seus diários e das suas notas, bem como de uma copiosa série de cartas – que escrevia em francês assinando Louis – que hoje sabemos tanto acerca das suas explorações que, por exemplo, viriam a ser extremamente úteis a Richard Burton aquando da própria expedição a Meca, décadas mais tarde.

Entre a profunda e vasta análise da cultura muçulmana a que se dedicou, Burckhardt testemunhou episódios marcantes da história, como a epidemia de peste que arrasou Hejaz e o Egipto entre 1812 e 1816, escrevendo a seu propósito “cinco ou seis dias depois da minha chegada a mortalidade aumentou; quarenta ou cinquenta pessoas morriam por dia, o que numa população de cinco ou seis mil pessoas foi muitíssimo.” Acerca do comércio de escravos escreveria: “assisti frequentemente a cenas da mais vergonhosa indecência e das quais os comerciantes, que eram os principais actores, apenas se riam. Atrever-me-ia a afirmar que muito poucas escravas com mais de dez anos chegam ao Egipto ou à Arábia ainda virgens.” Viajante, geógrafo, explorador, e orientalista, Burckhardt palmilhou na verdade uma enorme porção de territórios do Médio Oriente nunca antes vislumbrados pelos europeus. Ficou na História principalmente como aquele que (re)descobriu a antiga cidade de Petra mas a ele devem-se a descoberta também do Templo de Abu Simbel, bem como a partilha de toda uma série de conhecimentos e informações que viriam a revelar-se de enorme importância para o mundo europeu.

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