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Só na Guatemala se poderá viver a improbabilidade de conhecer um lago “evadido” para dentro da cratera de um vulcão. Morada dos maias, uma das mais impressionantes civilizações antigas, este país da América Central assombra pela sumptuosidade dos seus cenários e pela riqueza cultural, marcando para sempre quem o seu solo pisa

Fotos Visit Guatemala e D.R.

O vulcão mencionado tem o mesmo nome que o lago: Chicabal, um lago verde-esmeralda situado na cratera e cercado por uma densa floresta. Protegido pelos nahuales, seres espirituais que, na mitologia maia, nos protegem desde o nascimento, representa um espaço sagrado onde os banhos estão proibidos. Conta a lenda que antigamente se situava noutro lugar e que, ao sentir-se desprotegido pelo Homem, terá fugido a esconder-se na cratera do Chicabal, no departamento guatemalteco de Quetzaltenango. Divino ou não, uma coisa é certa, todos os dias por volta do meio-dia a cratera cobre-se de uma misteriosa e espessa neblina que após tocar as suas águas em poucos minutos abandona aquele lugar…

De Quhatezmalha ou de Quauhtlemallan

Situada em pleno Anel de Fogo, região onde se verifica um elevado número de terremotos e forte actividade vulcânica, a Guatemala conta cerca de 37 vulcões em território nacional, alguns deles ainda em actividade. Este país da América Central não só deslumbra pela densa vegetação, como pela sucessão de montanhas, variedade de flora, fauna e clima. As florestas tropicais, os lagos, lagoas e rios, a riqueza do seu passado e o modo como dele conseguiu evoluir constituindo uma nação de diversos idiomas e de profunda mistura cultural fazem deste destino um ainda intocado território onde o Homem pode, sem grande dificuldade, reencontrar-se com as suas origens na forma mais pura e ancestral.

Supõe-se que o seu nome constitua uma derivação do indígena Quhatezmalha, “montanha que verte água”. Esta montanha seria o Vulcão Água, que em 1541 arrasou Santiago de los Caballeros, a primeira capital espanhola. Outra teoria atribui a sua origem à palavra náuatle Quauhtlemallan, “lugar com muitas árvores”. Foi precisamente este lugar com muitas árvores e de uma beleza absolutamente estonteante que assistiu ao nascimento, ao crescimento e ao auge de uma das mais evoluídas civilizações de sempre: os maias. De um povo que no século III a.C. já detinha um sistema de escrita organizado e complexo, o primeiro de toda a região da Mesoamérica, fica-nos sobretudo o assombro face a profundidade do conhecimento que então detinha – matemático, astronómico, arquitectónico, só para nomear alguns – e a sensação da enorme perda que a humanidade sofreu com o golpe chegado por mãos espanholas aquando da conquista desta região pela coroa “nuestra hermana” no século XVI. A título de exemplo, o calendário maia é um dos mais complexos e precisos jamais produzidos pelo ser humano. Em comparação com o gregoriano, que utilizamos, é bastante mais preciso já que este último apresenta um desfasamento anual de seis horas entre a contagem dos dias e o movimento de rotação da Terra em torno do Sol, exigindo assim um dia a mais a cada quatro anos para correcções (daí dos anos bissextos), facto que não se verifica no calendário maia.

A memória maia

No norte e centro do território guatemalteca, cidades como Tikal, Uaxactún e Yaxhá representam pontos de absoluto deslumbre. O Parque Natural de Tikal constitui o epicentro desta civilização guardando ainda uma das cidades maias mais bem preservada de sempre, com mais de 3000 estruturas cercadas de densas florestas e que a UNESCO em 1979 declarou Património Mundial. Em Petén, o maior departamento da Guatemala num total de 22, o território está coberto por floresta e água e a capital – Flores – localiza-se numa ilha a partir da qual se tem acesso aos tesouros mais bem preservados do mundo maia. No norte deste departamento encontramos a cidade de Yaxhá, considerada como um dos melhores guardados segredos da cultura maia e que no passado manteve estreitas relações com o sul do México e com o Belize. Partindo daqui e passados dois dias de caminhada pela floresta alcança-se uma das mais impressionantes cidades: El Mirador. Terá sido erguida em 800 a.C. mantendo-se oculta até há poucos anos, com as primeiras expedições a realizar-se apenas no início da década de 1930. Ali ergue-se La Danta, a segunda pirâmide mais alta das Américas (depois da Pirâmide de Tepanapa) e a maior estrutura jamais construída pelos maias.

Os tempos áureos desta civilização seriam definitivamente encerrados com a chegada da colonização espanhola na era de Colombo e neste território por Pedro Alvarado, lugar-tenente de Cortés, por volta de 1523. Alvarado já antes tinha enfrentado os aztecas e em 1520 escapara por pouco à morte às mãos daqueles na cidade de Tenochtitán, no México, mas da presença espanhola nem tudo resultou, no entanto, em destruição e sobreposição de uma etnia sobre outra e a verdade é que a actual Guatemala constitui um caudilho de culturas que se interligaram irremediavelmente concorrendo para um resultado de inegável riqueza cultural.

As influências de Castela

Com Espanha chegaria inevitavelmente o cristianismo, sendo esta a religião dominante naquele território e cujo governo é oficialmente laico. A semana santa, por exemplo, assume festividades de importante carácter que envolvem praticamente toda a população sendo a quadra vivida com grande intensidade espiritual. As cidades vestem-se de tapetes de desenhos geralmente realizados com serragem ou areia tingida de diferentes cores e por onde passam as procissões em celebração da paixão e da ressurreição de Jesus Cristo. Obviamente que os traços das orientações espirituais ancestrais se mantêm presentes, vivendo-se muito o que os estudiosos apelidam de sincretismo religioso, com a cultura maia a misturar-se definitivamente com o cristianismo não apenas em termos religiosos mas com traços visíveis em diversos quadrantes da vida quotidiana. Um exemplo será o da cozinha guatemalteca, que realiza uma fusão entre as duas grandes culturas e que podemos saborear em pratos como o pepián ou até o tapado, particularmente célebre em Livingstone, e que deriva da presença de imigrantes africanos neste território e da sua miscigenação. A bebida tradicional guatemalteca é obviamente o rum. Produzido a partir do xarope de cana-de-açúcar que aqui encontra excelentes condições climáticas para o seu desenvolvimento, o bom rum guatemalteco é mundialmente reconhecido como um dos melhores do planeta.

A água como origem de tudo

Um dos factores que contribui em larga escala para que a Guatemala represente um país com tão excelentes condições agrícolas, como as que é possível testemunhar, por exemplo, em Almolonga, no departamento de Quetzaltenango, e onde a terra oferece ao Homem vegetais de dimensões espantosamente generosas, é a par com as condições climáticas, a abundância de água. De impressionante beleza, a cascata de Salto de Chilascó, em Baja Verapaz, é a maior da América Central, com 130 metros de altura. Em Alta Verapaz, o monumento natural de Semuc Champey goza também de uma impressionante abundância de água, consistindo numa ponte natural em rocha calcária com 300 metros de comprimento e por onde passa o rio Cahabón. Lá em cima, sucedem-se as piscinas escalonadas de águas turquesa que a floresta tropical vai beijando. Ainda mais impressionante, o Lago de Izabal, no leste da Guatemala, é o maior do país, alcançando uma superfície total de 589,6 Km2, com cerca de 18 metros de profundidade, escapando-se para o Mar das Caraíbas através do Rio Dulce. Aqui, em pleno Parque Nacional del Rio Dulce, que corresponde à área protegida que cerca este afluente do Izabal, encontramos o encantador e historicamente rico Castelo San Filipe de Lara. Com 18 Km de comprimento, o Dulce vai estreitando o seu percurso até se encontrar quase encerrado entre majestosas paredes de pedra calcária de cerca de 50 metros de altura, num desfiladeiro absolutamente exuberante. Nas selvas que circundam o Izabal é possível observar-se diversas espécies animais, incluindo o majestoso jaguar, símbolo de poder para os maias. Trata-se do maior felino das Américas e o terceiro maior do mundo a seguir ao leão e ao tigre. O jaguar não é um animal fácil de avistar mas o quetzal, de cores garridas e cauda que pode alcançar os 65 cm de comprimento, será ainda mais difícil de encontrar. Esta ave é tão apreciada que se encontra presente na bandeira nacional, no escudo e na moeda corrente assumindo a sua posição como ave nacional da Guatemala.

Arquitectura maia e colonial

Se a arquitectura dos antepassados da Guatemala é majestosa, o mesmo poderá dizer-se da que foi sendo erguida aquando da era colonial. La Antigua Guatemala é uma das mais encantadoras cidades guatemaltecas, tendo representado a capital do país entre 1541 e 1776 e sofrido o efeito de três terramotos que quase a destruíram por completo, facto que levou a que a capital acabasse por ser transferida para a Cidade da Guatemala. Apesar da sua vulnerável posição localizando-se no centro de forte actividade vulcânica, Antigua é uma vibrante cidade colonial que guarda ainda uma colorida colecção de igrejas bem preservadas e de ruínas datadas do século XVI. Virada para o gigantesco Vulcão de Água, reúne casas coloniais e edifícios históricos absolutamente encantadores, tratando-se também de um dos mais antigos exemplos de planeamento urbano da América Latina. Tendo representado um dos principais centros económicos, políticos e culturais da América Central durante o período que viveu como capital do país, deslumbra ainda em virtude da beleza da Igreja de La Merced, da Igreja e Convento dos Capuchinhos, da Plaza Central, da fonte histórica e das construções ali erguidas já nos séculos XVII e XVIII, com especial destaque para o romântico e icónico Arco de Santa Catarina através do qual a cidade observa o imponente Vulcão de Água. Quetzaltenango, a segunda mais populosa do país, é uma cidade académica que vale a visita pela riqueza que apresenta em arquitectura antiga, com especial destaque para as antigas igrejas, catedrais e basílicas. Chichicastenango, localizada a quase dois mil metros acima do nível das águas do mar, reúne um população maioritariamente quiché, grupo étnico maia que fala ainda o idioma ancestral. Aqui podemos encontrar um dos mais coloridos cemitérios do mundo e um mercado de rua abundante em alimentos da terra e do mar, sendo forte a tradição culinária de pratos que misturam a cultura maia com as tradições provenientes de regiões distantes.

Do café, do cacau e do milho…

San Juan La Laguna, junto ao Lago Atitlán que se encontra cercado por três vulcões absolutamente gigantes (Tolomán, San Pedro e Atitlán), é uma aldeia famosa pela sua pintura, artesanato, olaria e tecidos. Em Santiago de Atilán os descendentes da cultura maia trabalham a cultura do café, cuja elevada qualidade justificam com a proximidade das terras de cultivo dos vulcões e das montanhas. Na Guatemala, o início da cultura do café, uma das principais produções nacionais, verificar-se-ia em 1850. Outro elemento chave para a economia guatemalteca, o cacau é ali cultivado desde tempos imemoriais, sendo usado na confecção de pratos e bebidas maias e tendo até já servido de moeda. Se tivéssemos, contudo, de indicar a principal cultura maia seria indiscutivelmente a do milho a ser nomeada. Ocupa um papel de destaque na alimentação local, estando presente na maior parte das mesas ao pequeno-almoço, ao almoço e ao jantar. Ainda hoje, os descendentes dos maias recorrem aos calendários dos seus antepassados para identificar as estações adequadas ao seu cultivo, surgindo estas indicadas nos mesmos. Também no aspecto cultural se assinala a presença do milho, assegurando a tradição maia que o Homem terá sido criado a partir dele.

… ao jade e de volta à tradição

Ainda como forte presença tanto no presente como no passado deste território paradisíaco, o jade representou no passado maia a pedra mais preciosa, sendo ainda mais valorizado do que o ouro já que era associado à eternidade, à vida, à fertilidade e ao poder. Naquela época, era empregue em praticamente todas as sepulturas, sendo comum encontrar-se impressionantes ornamentações de colares que acompanhavam os mortos até à vida seguinte. Símbolo de sorte e saúde, o jade era no período maia utilizado para curar doenças renais, sendo impressionante a quantidade de aplicações desta pedra que foram encontradas nas sepulturas de importantes personagens do império antigo. Estas jóias e máscaras cerimoniais representavam importantes oferendas que, de acordo com o imaginário maia, seriam usadas na outra vida. O jade permitia que se acedesse ao transporte para a vida seguinte, razão pela qual era costume colocar uma destas pedras debaixo da língua do defunto. Grande parte deste jade era proveniente da Sierra de las Minas, uma cordilheira no leste da Guatemala que se estende ao longo de 130 quilómetros até ao Lago de Izabal e cujos depósitos de jade e mármore foram explorados ao longo dos últimos séculos A cordilheira integra diferentes habitats, incluindo a maior floresta nublada da Mesoamérica, e é lar de uma grande variedade de espécies animais. Em 1990, a UNESCO declarou grande parte deste território como Reserva da Biosfera.

Morada de três lugares classificados como Património Mundial da Humanidade (Antigua Guatemala, Parque Nacional de Tikal e Parque Arqueológico e Ruínas de Quiriguá) e de uma Reserva da Biosfera, a Guatemala representa, sem dúvida, um território que facilmente imaginaríamos povoado por deuses. Entre o Mar das Caraíbas e o Oceano Pacífico, representa um vasto reservatório de água doce nos seus rios, lagos e lagoas, sendo frequentes as praias paradisíacas que ora nos convidam ao surf, ora nos chamam à montanha, ao vulcão e ao passado. Terra onde as orquídeas nascem livremente e independentes da acção humana, é rica em diversidade animal e arbórea, em cenários inesquecíveis, quase divinos, que constantemente nos recordam um passado civilizacional incontornável e absolutamente impressionante: o da cultura maia.

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