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Foi tudo isto na primeira pessoa. Ou talvez não. Donzela provou ser, embora não inocente; como bruxa declarou-a o clero medieval em argumentação encomendada pelos interesses ingleses e pela sua sede de vingança. Heroína foi-o sem sombra de dúvida, comandando com apenas 17 anos exércitos cheios de homens desanimados rumo à vitória e santa foi-o séculos mais tarde declarada pela mesma Igreja que ordenou a sua morte

Às nove horas do dia 30 de Maio de 1431, uma rapariga de apenas 19 anos subia ao estrado na Place du Vieux Marché, em Rouen, que lhe serviria de pira funerária. Vinha vestida de branco e enquanto o povo gritava “bruxa”, “mentirosa” e blasfema”, a jovem provavelmente recordava a curta história de uma vida prestes a terminar de um modo grotescamente violento e que, no entanto, marcou a história de toda uma nação.

Nasceu no seio de uma família de camponeses por volta de 1412 em Domrémy, que mais tarde ficou conhecida como Domrémy – la Pucelle em homenagem ao seu apelido como Donzela de Orleães. A mais nova de quatro irmãos, revelou cedo a sua tendência para a religiosidade dirigindo-se muitas vezes à igreja local para onde fugia para orar e contemplar, referindo inclusivamente ter sido ali que com cerca de 13 anos ouviu as primeiras vozes (do anjo São Miguel e das santas Catarina e Margarida) que a incentivaram a manter a sua estreita ligação com o universo divino e também a envolver-se no conflito que causara a, então decorrente, Guerra dos Cem Anos.

A Guerra dos Cem Anos

Tendo o monarca francês fechado os olhos pela última vez sem deixar um filho varão, Inglaterra aproveitou a oportunidade para avançar, então, com a intenção de unificação dos dois reinos e quando Joana d’Arc finalmente decide acreditar-se portadora de uma mensagem e de uma missão divina – a de expulsar o jugo britânico de terras francesas e coroar o rei de França – Inglaterra declarara herdeiro Henrique VI e os Armagnac, fervorosos apoiantes da causa francesa, apoiavam Carlos VII, herdeiro da Casa de Valois, da Dinastia dos Capetos. Joana reclamava, então, ouvir instruções claras no sentido de oferecer o seu contributo para a expulsão dos ingleses, que cada vez mais se fortaleciam e tomavam conta das terras francesas. Ainda com 16 anos, tenta junto de Baudricourt, o capitão da guarnição Armagnac, obter uma escolta que a levasse até Chinon, onde se encontrava o Delfim Carlos VII, com quem desejava reunir no sentido de dar, então, lugar ao cumprimento da sua missão. Por três vezes abordou o referido capitão e por três vezes aquela lhe foi recusada. Na derradeira tentativa, cerca de um ano mais tarde, Baudricourt acedeu ao seu transporte e Joana d’Arc apresentou-se, então, na corte de Carlos VII.

Ao recear as suas verdadeiras intenções, Carlos VII preferiu disfarçar-se de nobre e misturar-se com os cortesãos de modo a não ser reconhecido aquando da chegada da jovem, o que se provou de enorme utilidade, já que Joana d’Arc dirigiu–se-lhe sem que alguém lhe indicasse o verdadeiro monarca dizendo “Senhor, vim para conduzir os vossos exércitos à vitória”, identificando-o no meio da multidão ali presente e sem alguma vez o ter observado, surpreendendo portanto tudo e todos com a sua clarividência.

No seguimento deste momento, Carlos VII reuniu-se com ela em privado, saindo desta reunião com a certeza de providenciar-lhe um exército que a ajudasse a recuperar os territórios já ocupados. Joana d’Arc seria ainda sujeita a outras provas para ser aceite como alguém credível, nomeadamente a confirmação da sua virgindade, que viria a garantir-lhe o apelido de Donzela de Orleães. E de Orleães porque, de facto, a jovem surgira imbuída de tão fervoroso espírito combatente e religioso que acabou por contagiar as já desmoralizadas tropas que defendiam os objectivos de Carlos VII, providenciando-lhes um tal ânimo que em pouco tempo Orleães foi arrancada a mãos inglesas, seguindo-se depois outras terras e mais tarde o corredor necessário para que Carlos VII fosse oficialmente coroado rei na Catedral de Reims a 17 de Julho de 1429.

A coroação de Carlos VII e o início da traição a que foi sujeita

Cumpria-se assim o desígnio incumbido pelas (santas) vozes a Joana d’Arc: coroar o rei de França. Joana d’Arc reacendia deste modo a esperança do povo e do exército na libertação do domínio inglês. Para que Carlos VII fosse efectivamente encarado como detentor do reino de França era necessário que obtivesse também o domínio de Paris, na altura tomada pelos ingleses, estabelecendo-se assim tréguas com Borgonha (apoiante de Inglaterra). Por seu turno, os ingleses deixaram Paris dirigindo-se desta feita para Rouen. Na Primavera de 1430 Joana havia já regressado às campanhas militares tendo, a 23 de Maio, sido capturada em Compiègne pelas tropas do Duque da Borgonha enquanto tentava libertar a cidade e mais tarde sido vendida ao exército inglês, que rapidamente a enclausurou em Rouen.

O julgamento de Joana d’Arc

A 9 de Janeiro de 1431 iniciava-se, então, o processo erguido contra a jovem, com o bispo Pierre Cauchon a liderar toda a acusação. Em dez sessões nas quais não foi autorizada a estar presente desenhou-se e estabeleceu-se o processo multiplicando-se as acusações contra si e transformando uma jovem inocente em bruxa, herética e perigosa individualidade que deveria ser eliminada da face da Terra. Ironicamente, seria também este mesmo processo que, mais tarde, a tornaria uma verdadeira heroína nacional e que a manteria viva para todo o sempre, permanecendo no imaginário nacional de mãos dadas com os ideais de independência territorial. A acusação incidiu sobretudo sobre as vozes que Joana d’Arc advogava ouvir e ter seguido, sobre o facto de vestir-se de modo masculino (muito provavelmente para evitar o estupro que ainda hoje não é inteiramente certo que não tenha sofrido pois caso se verificasse que já não era donzela, passaria por mentirosa e mais facilmente seria afastada) e claramente pela inteligência que revelou ao enfrentar sozinha as acusações de uma série de letrados rebatendo as mesmas com uma verdade e uma elaboração mental quase inocentes, de tão claras e iluminadas.

O seu destino seria, no entanto, inescapável. Apesar de cerca de 20 a 25 anos mais tarde a mãe e a irmã tudo terem feito para que o Papa Calisto III pedisse uma revisão do julgamento e a tivesse declarado inocente e ao processo nulo por vício de forma e conteúdo e ainda mais tarde, em 1920, fosse canonizada por Bento XV e proclamada mártir pela pátria e pela fé, a verdade é que, naquela manhã de 1431 caminhou em direcção à fogueira que através de dores excruciantes lhe causaria a morte sabendo-se inocente. Ao longo de todo este processo, Carlos VII nada fez para defender aquela que, ainda em tão tenra idade movera céus e terra para alcançar aquilo que nem ele nem os seus poucos apoiantes haviam conseguido: torná-lo rei.

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