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Fica na Beira Baixa e em 1938 foi-lhe atribuído o título de aldeia mais portuguesa de Portugal. Lá, no alto da torre do relógio, o primeiro galo de prata do País canta todas as manhãs a glória de uma das mais antigas aldeias de Portugal

Fotos Aldeias Históricas de Portugal

Localizada numa encosta escarpada a nordeste da Guarda, em Idanha-a-Velha, também conhecida como Pelourinho de Monsanto, alcança, no pico mais elevado, os 758 metros de altitude. Habitada por bárbaros, visigodos e árabes, foi tomada por D. Afonso Henriques, que em 1165 doa o território à Ordem Templária e que, por sua vez ao comando de Gualdim Pais, edifica o castelo que ainda ali se ergue. A presença humana data, contudo, de tempos muito anteriores, ainda da era paleolítica. Monsanto viria a adquirir o estatuto de vila por foral assinado pelo Rei D. Manuel I. Associadas ao castelo medieval estão diversas lendas, a mais curiosa a marcar uma tradição que se mantém até aos dias de hoje, a Festa de Santa Cruz. Ao que se sabe, esta mesma festividade seria originalmente profana, estando ligada às celebrações da chegada da Primavera e tendo mais tarde sido cristianizada. Conta que cercado o castelo durante sete longos anos na tentativa de vencer pela fome os seus defensores e restando apenas uma magra vitela e um alqueire de trigo, teve uma mulher a ideia desesperada de enganar os sitiantes, congeminação imediatamente aceite, tal era a falta de alternativas existentes. Alimentou-se o animal com o que restava do trigo e procedeu-se ao seu lançamento muralha abaixo mas de ventre cheio, na tentativa de informar os atacantes com a falsa ideia de que restava ainda muito que comer intramuros e que uma qualquer providência divina protegia os seus ocupantes. O inimigo, mordendo o isco, retirou-se da região e a paz regressou de novo àquelas cercanias. Desde então, e em todos os dias 3 de Maio, as mulheres vestem as suas melhores roupas e dirigem-se com marafonas e potes caiados de branco cheios de flores até ao interior do castelo, de onde, do alto das muralhas, atiram os mesmos para o exterior como em tempos foi atirada a última vitela que acabou por salvar a aldeia. Toda a celebração é acompanhada pela entoação de canções populares ao som de adufes representando uma festividade que merece ser testemunhada e ilustrando assim a tipicidade e o folclore da região. O castelo, a par com a muralha, foi em 1948 classificado como Monumento Nacional.

Famosa na imprensa nacional e estrangeira

Aldeia histórica, Monsanto integra a rede das 12 Aldeias Históricas de Portugal, representando um ponto de referência nas Rotas dos Caminhos de Fátima e de Santiago de Compostela. Monsanto desfruta também de vários percursos pedestres e de BTT que surgem identificados com moinhos, fontes e lavadouros, monumentos classificados, ribeiros e muros de pedra como pano de fundo. Foi a narrar o próprio isolamento em Monsanto que, apenas munido de um telemóvel, o jornalista João Pedro Mendonça realizou uma reportagem televisiva que lhe valeria a atribuição do Prémio Gazeta 2021 pelo retrato de um lugar recôndito, de gentes que ainda com uma forte ligação umbilical ao passado enfrentaram em 2020 a solidão de verem a aldeia vazia de familiares de férias, de turistas e de negócios a prosperar para regressarem à desertificação que, apesar de tudo, lhes garantiu zero casos de infecções aquando da primeira vaga. Considerada um ícone turístico da região, Monsanto foi também elogiada pela BBC, que se deslumbrou com o facto de “por centenas de anos, moradores da pequena vila” se terem adaptado “ao seu ambiente único”. Na verdade assim é e a aldeia vive de ruas estreitas de calçada “esculpidas na paisagem rochosa”, com “casas espremidas entre e sob gigantescas pedras de granito que pesam até 200 toneladas”. A BBC encantar-se-ia também com os intérpretes de adufe e com as marafonas típicas da Beira Baixa.

A Nave de Pedra de Fernando Namora

Aqui, onde Fernando Namora viveu dedicando-se à medicina e à narração escrita de episódios (também) ali vividos, foi há pouco eleito o cenário de filmagens da prequela da série internacional Guerra dos Tronos (House of the Dragon, com estreia agendada para Agosto), precisamente pela tipicidade e unicidade da pedra aliada à construção antiga, rude, mas sem dúvida resistente, e que nas palavras do médico-escritor surge descrita ao lado de um povo “soturno, endurecido a subir e descer abismos”. Tal como a pedra, as gentes de Monsanto são assim, de uma estrutura férrea lembrando as árvores que morrem de pé. Proposto para atribuição do Prémio Nobel da Literatura em 1981, Fernando Namora escreveria relatos acerca da realidade social e das condições em que Portugal vivia então. A obra A Noite e a Madrugada resultaria, aliás, do encanto sentido por esta aldeia e pelas suas gentes e histórias. O autor de Retalhos da Vida de um Médico ficou para sempre imortalizado naquela que baptizou de Nave de Pedra, e onde permanece ainda a casa em que habitou e lhe serviu de consultório entre 1944 e 1946.

Local de lendas e de tempos cruzados

Monsanto detém um património religioso consideravelmente importante, com diversas capelas e uma imponente igreja matriz. No sopé do monte, a apenas seis quilómetros, e abrigada por sobreiros e penedos graníticos, é incontornável a visita à Capela de São Pedro de Vir à Corça. Num ambiente de pleno silêncio e tranquilidade, parece retirada do tempo e um tanto mágica, representando um verdadeiramente extraordinário templo românico cercado por um denso arvoredo onde podemos encontrar um relógio de sol e duas sepulturas esculpidas em rochas. Provavelmente datada do século XII ou XIII, está ligada a uma lenda que narra o episódio de uma criança que foi salva do demónio por Santo Amador, tendo sido posteriormente alimentada por uma corça. Conta-se mesmo que as sepulturas que mais parecem ter sido escavadas à régua na pedra pertencerão ao ermita e a esta criança por ele adoptada. É possível que a lenda derive de adorações pagãs ainda de tempos lusitanos sendo popular a crença de que Sertório terá caído nas boas graças do povo lusitano ao afirmar-lhe que uma corça lhe segredava ao ouvido. A verdade é que aqui os elementos pagãos se confundem com os cristãos, com a corça a simbolizar o culto da deusa da caça Diana.

Um passado que se renova em cada ano

São inúmeros os pontos de referência a visitar em Monsanto, que no último fim-de-semana de Julho costuma celebrar as famosas festas em honra do Divino Espírito Santo. Desde a igreja paroquial, de estilo barroco e considerada a mais bela da região, à torre do relógio, mandada construir por José Maurício Calado, homem rico com muitas pessoas ao seu serviço, e que ali terá mandado colocar o relógio para que todos soubessem sempre as horas e pudessem deste modo evitar atrasos na chegada ao trabalho, as maravilhas sucedem-se. A vista panorâmica que do seu alto proporciona é absolutamente magnífica, tal como a que do castelo se obtém sobre as terras de Idanha, com a Serra da Estrela no horizonte a oeste, a barragem a sul e Penha Garcia a este. A Fonte do Peão, também de visita obrigatória, representa um dos símbolos da freguesia, encontrando-se envolvida em azulejos que retratam a vida rural e no passado ponto de encontro entre casais enamorados ou ponto de referência para a realização de jogos e bailes na altura do Dia da Espiga, festa assinalada na Quinta-feira de Ascensão. Outro elemento de grande beleza são os moinhos de vento, outrora de grande importância e essenciais à moagem do trigo e do milho.

Entre as brumas da memória

Actualmente apreciada por turistas que ali acorrem para beber da alma lusitana, a essência de Monsanto reside sobretudo nos seus grandes blocos de granito que com o cair da noite se assemelham a figuras quase fantasmagóricas. Aqui, onde o tempo parece não passar e a terra quem sabe esconderá um caminho secreto até outros séculos, ecoa a percepção que Namora um dia anotou. Aqui, “no dorso de monstro a crescer para nós até tomar conta de quase todo o céu” em “cada manhã” “nasce o mundo”.

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