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Em 1985 a Rainha Elizabeth, de Inglaterra, nomeou-o Sir, mas entre as inúmeras distinções obtidas destacou-se ainda mais em 2022 com o prémio Champions of the Earth, atribuído pelo Programa das Nações Unidas para o Ambiente. Vegetariano convicto, já não se recorda de quando comeu carne pela última vez e aos 98 anos continua a travar a batalha pelo planeta que desde cedo o maravilhou.

Fotos Conor McDonnell, WWF-UK

Habituámo-nos a recebê-lo em casa, tantas e tantas vezes com a família reunida em torno do pequeno ecrã onde, com a sua característica e inconfundível voz, nos foi apresentando o mundo natural e ajudando-nos a compreendê-lo ao longo de uma carreira de cerca de 70 anos. Foi pelas suas mãos que pela primeira vez assistimos ao quotidiano de espécies animais distantes, que observámos animais selvagens em movimento e que tomámos consciência das maravilhas que noutros recantos do mundo ocupavam a sua porção de terra. Em Portugal – e em muitos outros países – tornou-se especialmente conhecido através da série A Vida na Terra, que no final da década de 1970 (quem não se recorda das filmagens do radiante apresentador deitado na vegetação rasteira com os gorilas de montanha no Ruanda?), passou na televisão (foi vista por cerca de 500 mil pessoas) e nos abriu todo um novo universo sobre o nosso próprio planeta, pronto a ser explorado e que influenciaria os percursos de vida de muitos de nós.

Quando iniciei a minha carreira, nunca pensei que seria o cronista da história das mudanças da Terra a uma escala planetária

David Frederick Attenborough nasceu a 8 de Maio de 1926. Seria de esperar que aos 98 anos estivesse retirado e a saborear tranquilamente o seu tempo, mas não. A sua mente desconhece a palavra “parar” ou “reforma” e o seu espírito e o seu corpo pedem mais acção e dedicação à intensa paixão que detém pelo mundo natural. Se questionado acerca deste tema, responde com a maior das naturalidades ter tido “sorte” em encontrar-se em tão boa forma e recusar-se a “ficar em casa a fazer tricot”. Na verdade, a sua natureza não parece ter-se alterado ao longo da vida. Filho do director da Universidade de Leicester Frederick Levi Attenborough e neto de um homem de origens humildes, foi desde cedo incentivado a dedicar-se ao conhecimento, tendo crescido no campus universitário onde os pais moravam juntamente com o irmão mais velho Richard (que viria a tornar-se um famoso realizador) e o mais novo, John Michael. David é o filho do meio, que Richard descreveu em entrevista como uma pessoa constantemente desalinhada. “Lembro-me, quando éramos miúdos, de ele ter sempre uma meia acima e outra abaixo, a roupa toda amarrotada e sempre com nódoas. Não cheirava mal, nada mesmo, sempre foi limpo, mas nunca se preocupou com as roupas ou a aparência.” O testemunho é corroborado pelos membros das equipas que o acompanham em reportagem. “Uma vez filmámos o David em Virgínia (EUA) enfiado num pântano até à cintura e quando nos fomos embora, estávamos já no aeroporto prontos a partir para Nova Iorque, lá estava ele com as mesmas calças, ainda com as marcas da água!” conta o operador de som Trevor Gosling, a rir, também em entrevista à BBC Studios. A verdade é que para Attenborough, a roupa trata-se de algo absolutamente secundário, que poderá distrair o público do que realmente se pretende mostrar – e por isso afirma dar preferência às camisas azuis claras e calças bege. Aos 98 anos fala com o mesmo entusiasmo de uma criança dedicada a uma nova descoberta, confessando em 2020 (em entrevista ao programa 60 Minutos) ter uma cave cheia de pedras que foi trazendo dos diversos cantos do mundo por onde já passou. Na infância eram os fósseis que o entusiasmavam e que o absorviam por completo.

Impomos a mudança no mundo inteiro; tudo depende de nós. Podemos escolher o futuro

Membro fundador da World Wildlife Fund, é considerado um dos mais viajados homens do mundo, mas quando lhe perguntam qual é o seu lugar preferido responde ser a sua casa, “seja ela onde for”. Habituámo-nos a vê-lo com animais ao colo, como Benjamin, a cria de urso, que chegou a alimentar de três em três horas e que o mundo conheceria no final dos anos 1950 através de Zoo Quest, o programa que o estreou no ecrã britânico. A BBC era, então, a sua própria casa e onde tinha já aberto o próprio departamento, a Travel and Exploration Unit, onde produziria documentários como Travellers’ Tales e Adventure. Para aprofundar os estudos (formou-se em Ciências Naturais, em Cambridge) e fazer uma pós-graduação em Antropologia Social na London School of Economics e estudar filmagens, afastar-se-ia do quadro permanente da BBC, mas regressaria mais tarde, aceitando o convite para dirigir a BBC2. Attenborough foi, de resto, um forte impulsionador e dinamizador da qualidade do conteúdo televisivo da BBC, demonstrando uma mentalidade rica e apostando numa programação o mais variada possível. Foi o responsável pela chegada da televisão a cores ao Reino Unido e também quem apostou na série Monty Python’s Flying Circus, a surreal comédia criada por Graham Chapman, John Cleese, Eric Idle, Terry Jones, Michael Palin e Terry Gilliam, na altura já como director de programação da BBC Television. Acabaria, no entanto, por afastar-se das posições de chefia na estação de modo a poder voltar a criar e apresentar os próprios programas.

Testemunhei-o com os meus próprios olhos

A curiosidade pelo mundo natural representou sempre um apelo maior e, tendo viajado e assistido a tanto, Attenborough será provavelmente a melhor testemunha ocular das alterações que se manifestaram ao longo da sua vida nos diversos recantos do nosso planeta, já que a eles regressou algumas vezes.

A sua lista de publicações e de documentários é vasta, tal como é a quantidade de prémios que lhe foram atribuídos ao longo da vida, não apenas pelo mérito e enquanto comunicador que tanto nos ensinou sobre a vida natural, mas sobretudo como contador da nossa própria história e que tantos milhões de pessoas conseguiu tocar até hoje despertando a emoção, o entusiasmo, o sentido de propósito e a alegria que é fazermos parte deste pequeno ponto azul no imenso universo.

O último capítulo será escrito por nós, ainda podemos tornar-nos os heróis da nossa própria história

Ao longo dos últimos 70 anos, Attenborough tem vindo a inspirar gerações de conservacionistas, cientistas, fotógrafos, realizadores e amantes da vida selvagem a apreciar e a proteger o mundo natural. É mundialmente reconhecido pelo alerta permanente que faz acerca do desaparecimento da biodiversidade, das alterações climáticas e de outras ameaças e cuja voz se tem vindo a tornar mais sombria e desesperada ao longo das décadas à medida que foi testemunhando em primeira mão a destruição que o ser humano tem vindo a trazer ao planeta. Desde o primeiro momento da sua interacção com o grande público, narrou-nos a vida no nosso planeta como se de um policial ou uma série de aventuras se tratasse e emprestou carácter e personalidade às suas personagens. Os momentos de suspense, de alegria, de combate, de tristeza e de aflição dos intervenientes de cada uma das suas narrações tocaram-nos sempre com uma enorme proximidade. De repente, aqueles seres vivos já eram personagens e de um momento para o outro era quase como se fizessem parte dos “nossos” e os conhecêssemos desde sempre. A ligação estava estabelecida, a empatia passou a ser outra…

Da década de 1950 até hoje, o tom dos programas de Attenborough foi-se alterando. De um claro deslumbramento passou para um aviso consternado do que poderá suceder e do que nos arriscamos a perder se não alterarmos o rumo que estamos a impor à nossa própria morada.

Escolho imaginar um futuro no qual aprendemos a trabalhar com a natureza

Através das suas intrépidas aventuras, viajámos com Sir David por florestas tropicais, por desertos e por paisagens gélidas ou por cenários subaquáticos. Simples, humilde e apaixonado, representa, ele próprio, a história de uma história que não é apenas a nossa, mas também a de uma idade da Terra, do planeta que, de mão dada, nos levou a descobrir, e para o qual nos alerta ser urgente despertarmos e protegermos. Em reconhecimento dos recentes documentários acerca do mundo natural e da campanha que tem vindo a desenvolver no sentido de alertar para as alterações climáticas o, então, Príncipe Carlos de Inglaterra e actual rei atribuiu-lhe em 2022 o título de Cavaleiro da Grã Cruz da Ordem de São Miguel e de São Jorge. No mesmo ano, as Nações Unidas homenageavam-no com o prémio Champions of The Earth, justificando o gesto merecidamente por “dedicar a vida a documentar a história de amor entre os humanos e a natureza e transmiti-la ao mundo”. No passado dia 8 de Maio completou 98 anos. O Planeta estar-lhe-á certamente grato, como todos nós devemos estar.

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