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Em pleno corno de África, a Etiópia seduz não apenas pela beleza que lhe é intrínseca, mas também pela sua história e pelo modo como soube manter-se ao longo do tempo

Partir à descoberta dos nossos ancestrais é talvez um dos mais fascinantes e fortes motivos para conhecer a Etiópia. Lucy, o ser humano mais antigo de que temos registo e que terá vivido há mais de três milhões de anos, encontra-se agora no Museu Nacional da Etiópia, em Adis Abeba, a capital. Descobertos em 1974, os ossos trazidos à luz do dia por Donald Johanson, arqueólogo da Universidade de Case Western Reserve, em Cleveland, Ohio, viriam a comprovar-se como os mais antigos até hoje descobertos. O pequeno hominídeo a que pertenciam foi baptizado como Lucy, já que na altura todos acreditaram tratar-se de uma fêmea dada a sua reduzida estatura e também porque naquela noite, à luz das estrelas do céu africano, se celebrou a descoberta ouvindo repetidamente o tema dos Beatles Lucy in The Sky With Diamonds, que na época fazia furor…

De Kaffa e derivado de quhwa

Furor faz também nestas terras da antiga Abissínia o café. Na verdade, Kaffa, a região das terras altas da Etiópia perto da fronteira com o Sudão, representa o berço do café, apontando para o século X a.C. os primeiros momentos em que o Homem desfrutou desta bebida absolutamente magnífica. Depois ter-se-á expandido para o Egipto e para a Europa com a ajuda dos mouros, adquirindo o nome a partir do termo árabe qahwa, que significa vinho, tal era a importância que esta planta e este produto adquiriram naquele mundo. Conta-se mesmo que, de acordo com a lenda, um pastor chamado Kaldi concluiu que as suas cabras ficavam mais despertas ao ingerirem as folhas e os frutos do cafezal, tendo ele próprio experimentado as sementes e sentindo-se imediatamente mais resistente. No passado, as tribos locais moíam os seus grãos e criavam uma pasta para alimentar os animais e aumentar a força dos guerreiros. Uma ida à Etiópia requer, portanto, a reserva de algum tempo para provar os tons frutados e florais, delicados e leves no palato que esta bebida pode proporcionar. Considerado entretanto como um dos melhores do mundo, o café etíope encontra agora os seus mais famosos exemplos no Harrar e no Sidamo. E já que falamos de café, um périplo pela culinária etíope será vivamente recomendado. Sugere-se, pois, uma abordagem aos tradicionais e saborosos temperos berbere, mitmita e korerima, todos para provar de acordo com a etiqueta local; ou seja, dispensando os talheres e apostando nas mãos… bem lavadas, claro está!

Um percurso ímpar a nível internacional

Em pleno corno de África, a Etiópia seduz não apenas pela beleza que lhe é intrínseca, mas também pela sua história e pelo modo como soube manter-se ao longo do tempo. Com um estado monárquico a governar uma considerável fatia do seu passado, a dinastia etíope busca esta realidade ainda ao século X a.C.. Aquando da Conferência de Berlim, quando as potências europeias dividiram o continente africano a régua e esquadro, a Etiópia foi um dos poucos países que conseguiu manter a sua independência, tendo sido um dos três países daquele continente a ocupar assento entre a chamada Liga das Nações e após um breve domínio italiano passou a integrar as Nações Unidas, com a capital Adis Abeba a tornar-se sede de diversas organizações internacionais com foco em África após a Segunda Grande Guerra. Funciona actualmente como sede da União Africana e da Comissão Económica das Nações Unidas para África. 1974 marcaria o ano em que o regime dinástico seria deposto, com o país a adoptar um estado secular. Depois de um período de fome que assolou o território e do qual ninguém se esquecerá, a Etiópia representa hoje um dos mercados económicos africanos com maior crescimento, juntamente com o Uganda e Moçambique.Com diversos marcos classificados Património Mundial da UNESCO, assumiu-se um dos primeiros países cristãos do Mundo, mas onde um terço da população é muçulmana, representando ainda o local do primeiro hégira na história do Islão e a morada da mais antiga população muçulmana naquele continente onde, até à década de 80 (século XX), viveu uma considerável população de judeus etíopes.

A Jerusalém de África, a última capital do império e a terra de onde partiu a Rainha do Sabá para encontrar-se com Salomão e muito mais….

Em Amhara, a norte, ergue-se Lalibela, talvez uma das maiores atracções do país, onde encontramos as famosas e enigmáticas igrejas monolíticas esculpidas nas rochas sob as ordens do Rei Lalibela e que remontam ao século XII da era cristã. Há quem lhe chame a Jerusalém de África e não sem alguma razão. Sendo a Etiópia um país com uma das mais antigas tradições cristãs em todo o mundo, e porque os cristãos respeitavam a tradição de pelo menos uma vez na vida visitarem Jerusalém, viram-se os fiéis obrigados a encontrar uma alternativa quando a cidade foi dominada pelos árabes. Os católicos europeus voltar-se-iam para Roma para prestar o seu culto e Lalibela encontraria um modo de contornar esta inacessibilidade a Jerusalém mandando construir uma réplica daquela cidade no seu reino. São, então, onze as igrejas que juntamente com o único mosteiro maravilham quem ali chega pela primeira, segunda, terceira, quarta vez, não surpreendendo portanto a sua classificação como Património Mundial. A cerca de 640 quilómetros de Adis Abeba, sucedem-se os sepulcros e os lugares sagrados desta cidade labiríntica escavada no subsolo. Destaque para a Igreja de São Jorge, absolutamente impressionante na sua magnitude e temporalidade. Como centro de ensino eclesiástico da Igreja Ortodoxa Etíope, Gondar é outra cidade que merece visita, tendo representado a última capital do império, onde nos castelos que restam da época dinástica se respira a memória dos descendentes do Rei Salomão (o filho de David) e da Rainha do Sabá, que de acordo com a lenda estarão na génese da própria dinastia etíope. Ainda como visita obrigatória, recomendamos a antiga cidade de Axum, que no passado representou a sede de um dos estados mais poderosos da região que se estende entre o império romano do ocidente e a Pérsia. Ali foram construídos palácios e igrejas. Antes, ainda durante os primeiros séculos do primeiro milénio d.C., foram erguidas estelas de pedra a recordar os grandes reis, prática que durou até cerca de 330 d.C.. Actualmente podemos encontrar ali mais de 100 obeliscos, mas quase todos caídos e danificados. Terá também sido daqui que, de acordo com a Igreja Ortodoxa Etíope, terá partido Maqueda, a famosa Rainha do Sabá, para visitar o Rei Salomão em Jerusalém e de cuja união terá nascido Menelique I, que de Jerusalém para a Etiópia terá, por sua vez, transportado a Arca da Aliança. A mesma, reza a lenda, estará ainda e desde então localizada na Igreja de Santa Maria de Sião, que sofreu várias destruições e reconstruções. A arca deverá estar guardada por um monge, a única pessoa com autorização de apreciar a peça. Em Geralta, área dominada por formações gigantescas de rocha numa paisagem elevada e desértica de espectacular beleza na região de Tigré, é possível apreciar um conjunto de 35 igrejas escavadas na pedra, lugares absolutamente únicos tanto pela vista que proporcionam como pela sua arquitectura, pintura e manuscritos. Para aceder às igrejas será necessário caminhar, o que contribui de modo determinante para que mergulhemos na paz e na harmonia que este lugar remoto proporciona e pelas quais se caracteriza. Do conjunto destacamos as igrejas de Abuna Yemata Guh e de Debre Maryam Korkor.

A quarta cidade mais sagrada do Islão

A marcar um enorme contraste com a religião predominantemente ortodoxa de Adis Abeba, Harar, no Leste da Etiópia e a de 500 quilómetros de Adis Abeba, representa a capital muçulmana, uma velha cidade murada com mais de 80 mesquitas e 100 sepulcros que é encarada como o quarto lugar mais sagrado do Islão. Declarada Património Mundial em 2006, foi fundada por imigrantes árabes entre os séculos X e XIII como Harar Jugol e é sobretudo habitada pela etnia oromo. Em 2003 seria eleita para recolher o prémio de Cidade para a Paz, atribuído pela UNESCO, dada a sua coesão social e tolerância religiosa. Ali, a influência do sufismo é muito forte, sendo comum assistirmos à prática de rituais e de meditação. Junto ao túmulo do fundador da cidade, o Sheik Abadir, é frequente encontrarmos crentes que ali se sentam horas a fio a meditar enquanto mastigam khat, uma planta conhecida pelas suas propriedades estimulantes. Para aqui rumou Artur Rimbaud, o poeta francês, depois de abandonar a poesia que o marcou na História, para se tornar mercador de café antes de partir em nova aventura. Em Harar permaneceu cinco anos, o período mais longo durante o qual não saltou de destino em destino. Ali encontrou a sua paz e para ali sonhou sempre regressar. A apenas 40 quilómetros adiante no espaço e também no tempo, o famoso mercado de camelos continua a decorrer rigorosamente duas vezes por semana, transportando-nos a um outro tempo, também ele em pausa. Usados tanto para consumo como enquanto meio de transporte, os camelos são geralmente comercializados por nómadas somalis, que em cada manhã chegam a vender 200 exemplares começando sempre a negociação com base em 500 euros por cabeça…

Montanhas, vulcões e etnias

Para um percurso off the beaten track, mais alternativo mas nunca menos espectacular ou surpreendentemente encantador, as Montanhas Simiens, mais conhecidas como o rooftop de África, proporcionam passeios fantásticos com paisagens inesquecíveis, sendo também referenciadas como morada de babuínos e de leões de montanha. Na região de Afar, a Nordeste, situa-se o vulcão basáltico em actividade permanente, Erta Ale. Com 613 metros de altura e um ou dois lagos de lava activos no cume que ocasionalmente transbordam do lado sul, o Erta Ale é notável por manter o mais antigo lago de lava, que ali permanece desde o início do século XX (1906), contando-se entre os oito vulcões com lagos de lava existentes em todo o mundo.

A Etiópia conta com cerca de 80 grupos étnicos distintos. Os oromo representam o grupo mais numeroso, logo seguido dos amhara. No Vale do Omo, na região sul, encontramos um dos poucos lugares em todo o mundo onde habitam povos indígenas que ainda não foram influenciados pelo mundo dito civilizado. Ou quase, pois para se fazer uma fotografia há que pagar e nem sempre as notas velhas são aceites… Claro que esta realidade dependerá de tribo para tribo, mas muitas vezes o estrangeiro, ou faranji, em amárico, é visto também como algo exótico… tanto como estes mesmos povos que nos seduzem com as magníficas formas como decoram o corpo, como se pintam e penteiam. O Vale do Omo representa actualmente uma das maiores atracções da Etiópia, representando um lugar onde podemos encontrar mais de 50 dos grupos étnicos que vivem em todo o território etíope. Os hamers criam penteados surpreendentes com barro vermelho, os dorse vivem em casas com o formato de cabeças de elefantes e os mursi são extremamente curiosos. As mulheres desta etnia distinguem-se pelas placas de argila que usam como adorno nos lábios e que lhes é colocado por volta dos 20 anos para potenciar a sua beleza, diz-se. Afirmam, no entanto, os conhecedores que os mursi optam por este tipo de adereço para evitar que as mulheres casadas ficassem muito atraentes aos olhos de traficantes de escravos, de invasores e, claro, de todos os outros homens… Hoje em dia, a grande maioria não sabe sequer porque usa as referidas placas, passando a maior parte do dia sem as mesmas, já que as suas dimensões e peso dificultam não só a fala como a alimentação.

Berço da civilização e terra natal de Lucy, com quem iniciámos esta “viagem”, a Etiópia é referência por inúmeras razões, como por exemplo graças à região onde se localizava o já referido reino de Axum, que surge mencionado na Bíblia, na Ilíada e na Odisseia, de Homero. Em Harar um agitado poeta francês encontrou o mais longo período de estabilidade e de paz e aqui guardam-se ainda as memórias de etnias que o tempo e o mundo há muito teriam esquecido se assim não fosse. Por estas e tantas outras razões, a Etiópia é sem dúvida um lugar tão encantador como surpreendente e tão rico como comovente.

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