0
Shares
Pinterest Google+

Sydney – Uma Cidade com Arte

A grande variedade de galerias de arte, a frequência das exposições, a diversidade da escultura pública e uma arquitetura em crescente mutação tornaram Sydney numa capital da arte nos antípodas.

Texto e fotos Maria João Castro

A cidade nasceu no bairro The Rocks, porto que viu chegar à ilha-continente os primeiros colonos que logo trataram de tentar afastar os autóctones – os aborígenes –, para assim contrariar a ideia de que esse lugar era já pertença de alguém, ainda que os conquistadores não fossem mais do que um par de pontinhos na pintura aborígene. E é por este bairro singular que o visitante se deve iniciar na urbe, apesar de, numa primeira visita, não haja como contornar o ex-libris citadino: a silhueta da Ponte da Baía de Sydney a emoldurar, ao fundo, o edifício da Ópera.

Encaixado entre a Ponte e a famosa Ópera, encontra-se o bairro The Rocks, lugar do primeiro porto de Sydney. Situado no coração da colónia primitiva, aqui se edificou o primeiro assentamento europeu da Austrália, em 1788. As primeiras construções eram casas vernáculas tradicionais com telhados de palha, e mais tarde de arenito, a pedra a partir da qual derivou o nome do bairro. Gradualmente e, conforme a colónia crescia, os mais abastados foram-se instalando colina acima, deixando a área entregue ao vício e à luxúria. E foi nesta área que se instalaram presidiários, marinheiros e meretrizes, mantendo vivo um lugar de prescritos numa inigualável sedução.

Já no século XX, a degradação e deterioração de muitas construções levou à sua demolição, mas os sindicalistas conseguiram pôr cobro à destruição maciça e parte do antigo bairro foi poupado. E é precisamente nos edifícios antigos que se consegue resgatar a alma vadia da velha colónia. Bordéis convertidos em hotéis de charme, antigas tavernas transformadas em cafés elegantes, decrépitos armazéns de mercadoria reconvertidos em lojas de chapéus vintage ou chocolatarias de inebriantes aromas, velhas celas de prisão que albergam salas de um bar, vetustos antros de jogo e fumo que deram lugar às galerias de arte, tudo conflui num bairro de inusitado charme.

Cada edifício, passagem ou fachada esconde uma história: basta atender nas pedras e deixá-las desfiar presságios e sortilégios. É o caso do Harbour Rocks Hotel: quando se entra no recinto, experimenta-se a sensação de andar para trás no tempo, até aos dias antigos. Cento e cinquenta anos de história num edifício onde outrora se situou o primeiro hospital de Sydney, depois o Evan’s Loft – lugar desonrado e ilícito da sociedade oitocentista –, até se tornar num armazém alfandegário e depois num hotel. Mas para se apreender a sua história é necessário aludir ao fantasma de um marinheiro apaixonado, de seu nome Eric. Diz a lenda que este se enamorou por uma dama de um prostíbulo de má reputação, suplicando-lhe para com ele se casar. A jovem aquiesceu,despedindo-se para uma última viagem do marinheiro à América do Sul. Por altura do seu regresso, cumprindo o destino romântico, Eric descobre que Scarlett morrera, vítima de tuberculose. De coração partido, o homem do mar não tardou a perecer. Dizem que o fantasma Eric ainda percorre à noite os corredores do hotel, sussurrando o nome da sua amada ou interpelando os hóspedes na senda do seu paradeiro. Dizem que no quarto que habitou, de vez em quando se ouve alguém chamar ao vento o nome de Scarlett. Dizem…

Descendo a rua, à beira da baía encontra-se o Museu de Arte Contemporânea da Austrália, encaixado entre o espelho de água que reflete o telhado da Ópera e o Circular Quay: o espaço, que hoje alberga uma interessantíssima coleção permanente e um núcleo de exibições temporárias curioso, foi outrora um armazém que garantia os serviços marítimos dos primeiros desembarques de presidiários e soldados da Grã-Bretanha no século XVIII, dando início à história colonial do país.

Mas Sydney não é só o The Rocks; há outros lugares eleitos: caminhar ao longo do Darling Harbour apreciando os inúmeros cafés e restaurantes ou simplesmente olhar para o lado oposto e perder-se por entre as embarcações de madeira em estilo retro à “Mississipi” e as lanchas de avançada tecnologia; palmilhar as ruas de China Town, o Market City, as igrejas antigas, a Public Library ou perder-

-se por entre a coleção de arte aborígene que se alberga na South Wales Art Gallery. A mais que não seja porque esta, juntamente com outras culturas ditas “primitivas”, como a africana, se encontram na origem da cultura artística ocidental do século XX. A génese de tal influência dever-se-á, porventura, ao facto de as vanguardas europeias do século XX, nomeadamente o Cubismo, terem encontrado na arte rotulada de “indígene” uma originalidade e força que faltavam à arte do Velho Continente. Não é por acaso que a obra fundadora deste movimento, as Demoiselles d’Avignon, de Pablo Picasso, datada de 1907, reflete a inspiração e o mergulho do pintor na arte africana, abrindo as portas a um novo paradigma na pintura moderna ocidental.

Existem muitos outros programas alternativos: apanhar um autocarro até à famosa praia da Bondi, subir à Heartbreak Hill e descer pelo bairro de Kings Cross, regressando ao The Rocks para apanhar uma lancha e ir ver baleias ao largo da cidade. Se se preferir ficar em terra, há a hipótese de visitar o Luna Park, uma feira extravagante cujo acesso se faz através da boca gigante de um palhaço que engole o visitante, emprestando-o, por algum tempo, a um mundo diáfano e melífluo de contorcionistas, músicos, acrobatas, palhaços, ventríloquos, malabaristas, domadores, excêntricos, anões, bailarinos, todos personagens de um filme cómico-trágico que se eclipsa mal saímos os portões, como um sonho evanescente.

Regressa-se ao lado do porto iniciático dos “Rochedos”. Refúgio em tempos de imigrantes e condenados, que viveram num emaranhado de ruas de pedra e becos sem saída, escuros e fétidos, mas igualmente excêntricos e sedutores, o The Rocks transmite a aura de um tempo único, resgatando a atmosfera dos dias idos onde marinheiros, soldados e estivadores afogavam as tristezas num copo de rum cujo bafo acabaria sufocado no corpo de uma mulher de aluguer. Hoje as lojas modernas e as galerias de arte substituíram a maior parte desses sítios de pecado e perdição, ainda que se lhe tenha colado a patine feiticeira dos lugares decadentes. Porque a ruína tem a sua beleza, estimula a imaginação… Por isso, hoje, o bairro The Rocks apresenta-se como uma joia rara de uma época perdida, inebriando o forasteiro com os seus segredos, pecados e luxúrias, por entre a melancolia nostálgica de antanho e um presente de inolvidável modernidade e fulgor artístico.

 

 

Previous post

Santa Ynez Valley - Os vales da Califórnia

Next post

Uganda - A pérola de África