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Jacques-Yves Cousteau, para tantos de nós uma personalidade que habitou a nossa infância entrando-nos com os segredos dos oceanos pela sala adentro através dos seus documentários de televisão, foi a vários níveis um extraordinário percursor. Desbravou o universo subaquático e há já 50 anos alertava para a urgência de proteger o planeta

“Olhei para o mar com o mesmo sentimento de invasão que senti em cada mergulho. Um pequeno desfiladeiro abriu-se abaixo, cheio de plantas aquáticas verdes-escuras e ouriços-do-mar negros e de algas brancas que pareciam pequenas flores. Alguns peixinhos surgiram no cenário. A areia escorregou para o infinito claro e azul. A luz do sol incidiu nos meus olhos com tal brilho que eu mal podia abri-los. Mantendo os braços ao longo do corpo, movi as barbatanas lentamente e desci, ganhando velocidade e vendo a praia a desaparecer. Parei de bater as pernas e o impulso fez-me deslizar de um modo fabuloso.” (Jacques-Yves Cousteau, acerca do primeiro mergulho realizado em 1943 com o Aqualung)

Nascido a 11 de Junho de 1910 em Saint-André-de Cubzac, em França, Jean-Yves tornar-se-ia um dos mais famosos franceses de todo o mundo. Até à sua morte, em 1997, escreveu, filmou e denunciou a incúria do Homem prevendo catástrofes ecológicas que viriam a suceder, logrando a aprovação de uma “Declaração dos Direitos das Gerações Futuras” que recebeu o apoio de nove milhões de cidadãos em todo o mundo. A sua vida de oceanógrafo ficou sobejamente conhecida, o que não aconteceu tanto ao nível da sua personalidade, própria de um homem que raramente aceitava uma contradição, capaz de grandes gestos mas por vezes também de um egoísmo surpreendente, ambicioso e até narcísico que partilharia a vida com duas mulheres e duas famílias. Não houve, no entanto, quem tenha feito mais para divulgar a vida marinha. Em 1930, com vinte anos, integrou a Escola Naval de Brest com intenção de tornar-se aviador naval, seguindo a via de oficial de artilharia, mas seis anos mais tarde sofreria um acidente de automóvel que mudaria para sempre o seu percurso profissional. Com apenas 26 anos e a caminho de um casamento, o jovem Cousteau sofre um terrível acidente ao volante do Salmson desportivo do pai, vendo-se impossibilitado de seguir a carreira da aviação. Com dois braços partidos, Cousteau dedicou-se então à natação como meio de reabilitação e fortalecimento, descobrindo assim um chamamento ainda mais forte: os oceanos aguardavam-no.

Invenções determinantes para a descoberta submarina

Julho de 1937 marcaria a data do seu casamento com Simone Melchior, com quem teria dois filhos, Jean-Michel e Philippe, e que com ele partilhariam de inúmeras aventuras a bordo do carismático Calypso. Este navio fora adquirido com a ajuda de Thomas Loel Guinness, que assumiu o seu pagamento e o alugou a Cousteau por um franco por ano. Simone desfazer-se-ia das joias de família para ajudar a suportar as despesas de tamanha empresa e em breve partiria a bordo da embarcação recuperada rumo ao Mar Vermelho. Com Émille Gagnan, Cousteau co-desenvolvera o famoso Aqualung, um tipo de equipamento de mergulho que integra um cilindro de ar comprimido e de um regulador de mergulho que fornece gás respirável à pressão ambiente que viria a ser comercializado a partir de 1946 e apostou ainda mais no sonho de viver debaixo de água, ideia que partilhou em 1960 ao tornar-se capa da Revista Time afirmando crer que, no futuro, a ciência médica poderia avançar ao ponto de o Homem optar por adquirir brânquias artificiais que o capacitassem para este efeito. Sobre isto diria mesmo “Tudo o que se fez até agora à superfície em breve será feito debaixo de água. Será a conquista de todo um novo mundo”. Cousteau descreveria a sua investigação submarina numa série de livros, dos quais o mais famoso será, sem dúvida, The Silent World: A Story of Undersea Discovery and Adventure, que daria origem ao maravilhoso documentário The Silent World, que venceria uma Palma de Ouro naquela categoria, prémio apenas secundado por Michael Moore em 2004 com Fahrenheit 9/11.

Paladino do ambiente

No início da década de 60 o Comissariat à l’Énergie Atomique preparava-se para descarregar para as águas do Mar Mediterrâneo uma considerável quantidade de lixo radioactivo. Cousteau organizou uma campanha pública que em menos de duas semanas alcançou um enorme apoio popular e o comboio que transportava este material acabou por ser detido por mulheres e crianças que se sentaram nos carris, obrigando ao seu recuo. Foi ainda nesta década que Cousteau decidiu envolver–se na concepção de três projectos de construção de aldeias subaquáticas (Precontinent I, Precontinent II e Precontinent III) que, cada um à sua profundidade, tentavam criar um ambiente no qual fosse possível viver e trabalhar independentemente da sua submersão. De The Undersea World of Jacques Cousteau nasceu a personagem com o gorro encarnado que viria a tornar-se uma imagem de marca. Philippe, o filho mais velho, estaria sempre ao seu lado, encarregue de realizar filmagem atrás de filmagem, como aconteceu com The Shark: Splendid Savage of the Sea. A Cousteau Society nasceria em 73 com o intuito de proteger a vida oceânica. Nesta altura já John Denver dedicava canções ao universo de Cousteau, com o tema Calypso a subir nas tabelas de venda. Em 76, o oceanógrafo localizaria os destroços do HMHS Britannic, originalmente chamado Gigantic e terceiro da classe Olympic de transatlânticos, depois do RMS Olympic e do RMS Titanic, e ainda o La Therèse, do século XVII, nas águas costeiras de Creta. No ano seguinte, juntamente com Peter Scott, Cousteau receberia o UN International Environment Prize, mas dois anos mais tarde a tragédia bater-lhe-ia à porta, aqui no nosso país, com Philippe a despenhar-se no Estuário do Tejo, próximo de Lisboa, e a falecer com a precoce idade de 38 anos. Perder o filho com quem tinha tanta cumplicidade e que com ele produzira todos os filmes desde 1969 representou um duro golpe para Cousteau. Teria sido juntamente com ele que, na Antártida, em 72, reunira os ossos de várias baleias jubarte dizimadas pela caça formando assim o esqueleto de um exemplar. Cousteau havia-se há muito tornado um defensor do mundo natural, destacando-se o seu esforço no lançamento de uma petição mundial de extracções de minérios na Antártida e evitando assim qualquer tipo de exploração naquele território, seja de minério, de ferro ou de petróleo. Ao Jornal Globo afirmava em 1970 “A vida submarina decresceu em cerca de 40% nos últimos 50 anos. Mais de mil espécies foram extintas e a destruição aumenta de ano para ano. Como consequência da contaminação das águas, os recifes de coral estão a diminuir, espécies inteiras da fauna aquática estão em vias de extinção e milhares de peixes morrem anualmente pela ingestão de substâncias ou objectos lançados ao mar.” Na década de 80, o antigo oficial da marinha francesa realizou uma expedição ao Brasil para estudar no Rio Amazonas o modo como a actividade humana ao longo do curso de água afectava a vida nos mares. A propósito desta investigação, afirmaria “a guerra do futuro será entre os que defendem a Natureza e os que a destroem. E a Amazónia vai ficar no olho do furacão.” Cousteau participou na Conferência ECO-92, tornando-se a partir de então consultor das Nações Unidas e do Banco Mundial. Em 1997, duas semanas depois de completar 87 anos, Cousteau morria de ataque cardíaco, em Paris. Gostava de apelidar-se de técnico de oceanografia, mas na verdade era um sofisticado amante da Natureza, especialmente do mar. O seu trabalho permitiu que povos de todos os continentes testemunhassem a vida submarina e explorassem os recursos do continente azul através da televisão, representando uma personalidade admirada e mundialmente apreciada, simbolizando o espírito da aventura, da Natureza e da exploração. Há 50 anos já alertava para a vulnerabilidade das condições naturais. Estaremos agora prontos para prestar-lhe atenção?

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